terça-feira, 16 de novembro de 2010

A cada 14 dias morre uma língua


Ele não é Indiana Jones, mas está perto desse perfil. David Harrison é um “caçador de línguas”, ou talvez devêssemos chamá-lo de um salva-línguas, ou quem sabe de um garimpeiro de palavras, sei lá, chame-o do que quiser, o fato é que ele é o responsável peloNational Geographic Society’s Enduring Voices Project, e pelo Living Tongues Institute for Endangered Languages, projetos com objetivos parecidos: rastrear os cantos mais afastados do mundo em busca de línguas desconhecidas, e tentar resgatá-las, ou registrá-las, evitando o seu total desaparecimento. Harrison é um linguista com doutorado pela Universidade de Yale, professor do Swarthmore College, autor de vários livros, entre eles The Last Speakers (2009), tendo longa experiência em resgate de línguas, com trabalhos realizados na Sibéria, Mongólia, Bolívia, Índia e América Nativa.
Existem hoje perto de 7 mil línguas sendo usadas no planeta. É possível que em 2100 mais da metade delas tenha desaparecido, levando consigo pedaços da civilização, riquezas culturais, conhecimentos e história. É através da língua que as pessoas falam e se comunicam, e muito do que sabemos sobre a natureza humana é codificado apenas oralmente. Quando a língua desaparece, desaparece junto grande parte da sua cultura, que provavelmente não consegue ser expressa em outro idioma. A cultura indígena talvez seja o exemplo mais cabal. As comunidades indígenas interagem há milhares de anos com seu meio e transferem a ele profundos conhecimentos sobre as regiões que habitam, sobre as plantas, animais e ecossistemas, sendo que muito desse conhecimento não foi ainda registrado pela Ciência. Estudar a língua deles pode, assim, gerar grandes benefícios ambientais e esforços de conservação. A história mostra que línguas de comunidades poderosas, muitas vezes opressoras, e em geral asfixiantes culturalmente, se espalharam ao longo dos tempos sufocando as línguas de culturas minoritárias. A diversidade de línguas de um país pode ser um grande tesouro e um diferencial cultural de grande impacto futuro (existe mais diversidade de línguas na Bolívia, por exemplo, do que em todo milenar continente europeu).
Recentemente uma língua “oculta”, denominada koro, foi encontrada na região nordeste da Índia, em uma tribo isolada (comum na Índia). A koro é falada por cerca de mil pessoas e pertence a família linguística Tibeto-Burman, que inclui 400 idiomas, tais como o tibetano e o birmanês. Uma equipe do Projeto Enduring Voices descobriu essa língua em 2008 quando buscava conhecer na região outras duas línguas, a Aka e a Miji. Chegando a região e fazendo gravações com as tribos locais, descobriram uma terceira língua, a koro. David Harrison e esse reduzido grupo de profissionais, especializados em resgatar línguas em extinção, podem um dia estar nas aldeias da Amazônia, e em outro nos confins da Sibéria transcrevendo fonemas, gravando conversas dos 
habitantes locais, filmando seus costumes e sua cultura (canções, lendas, etc.) que possivelmente nunca haviam sido registrados antes. Como descreveu Harrison em entrevista ao jornal El Mundo e à Efe, “A língua faz parte da identidade e da cultura de um povo, por isso quando ela se extingue a comunidade e nós todos perdemos sua história, sua mitologia, seus costumes, sua poesia e a expressão de sua criatividade”. Uma das indústrias sempre preocupada com a extinção linguística é a farmacêutica, que terá cada vez mais dificuldades de pesquisar novos princípios ativos nas florestas se não puder se comunicar com as comunidades locais.

Na América Latina, três regiões são as mais ameaçadas por esse tipo de desaparecimento: uma localizada ao Sul, no centro do Paraguai, outra no México e uma terceira região, mais sensível, que se espalha pelos Andes até a Amazônia, abrangendo especialmente países como a Bolívia. Harrison fala da inevitabilidade de extinção nessas regiões: “A América Latina é uma das regiões mais ricas em diversidade linguística, mas já há um avançado estágio de extinção de muitas delas, que torna impossível serem salvas. É quase certo que vão desaparecer”. A situação de 48 línguas latino-americanas é “grave”, estando algumas já em avançado estágio de desaparecimento, como a vilela, na
Argentina, que conta com pouco mais de dois indivíduos que a falam, ou da ofayé, no Brasil, com apenas duas dezenas de nativos que se comunicam através dela. Outro exemplo está na Bolívia, região em que a equipe de Harrison estudou a kallawaya, que é falada por cerca de 100 pessoas em rituais religiosos e práticas medicinais, sendo considerada uma língua secreta, só transmitida de avós para netos. Harrison acha que a chave para a salvação de muitas delas está nas gerações mais jovens. “Eles tem o poder de decidir se mantêm sua língua viva. Depende se são incentivados a usá-la ou se sentem pressionados (ou envergonhados) de se comunicarem através dela”, diz Harrison.

Existem vários projetos que caminham na direção da preservação linguística, como o da ONU (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), ou da Unesco, ou mesmo do Ministério da Educação do Brasil, que faz um trabalho nas comunidades indígenas. Mas tudo parece muito pouco comparado à velocidade com que o processo de extinção avança. Em 500 anos de história do Brasil perto de 85% das línguas indígenas já desapareceram (segundo a Unesco, todas as línguas indígenas brasileiras correm algum risco de desaparecer). Na Europa são faladas 230 línguas, enquanto no continente asiático são mais de 2000, e na África, das 1400 línguas existentes 550 poderão sumir em breve, segundo relatório da Unesco. Um exemplo típico do imperialismo linguístico é o australiano. Na Austrália, nos últimos 100 anos, foram extintas centenas de línguas aborígenes e outras tantas estão em processo de desaparecimento em decorrência das políticas de assimilação cultural em voga até a década de 70. O país priorizava o idioma inglês como língua oficial em detrimento das línguas minoritárias. Pura herança colonialista.
A transformação linguistica é um fenomeno crescente no século XX e XXI, como mostra o estudioso David Crystal em A Revolução da Linguagem (2006). Os países que têm consciência sobre a importância das línguas minoritárias são poucos. Um deles é a Irlanda, que nos séculos XVII e XVIII, com a ocupação inglesa, viu a língua galesa ser proibida. Todavia, os irlandeses lutaram pela preservação e continuaram se comunicando, às escondidas, em galês, sendo que em 1921 a língua galesa voltou a ser aceita sem restrições e passou a ser ensinada nas escolas. A chamada Lei da Língua Galesa, de 1993, estimula a difusão do idioma, hoje falado por cerca de 19% da população. Quem já foi a Barcelona, andou pelas ruas e ouviu a maioria da população se comunicando em catalão pode achar que isso é um atraso. Não é. Além da luta política regional, existe a luta pela preservação da língua, que suporta costumes milenares e mantem viva uma das mais ricas culturas da Europa. Não se trata de extinguir a globalização, mas de não deixar que ela semeie a pura e simples eliminação das culturas étnicas minoritarias, lastreadas em geral por suas línguas e dialetos.
por Kelly de Souza

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