domingo, 24 de julho de 2016

Suicídio indígena: entenda como povos e antropólogos da Amazônia avaliam o ato

Foto: Divulgação/Gcom-MT

MANAUS – O suicídio indígena vai além das estatísticas divulgadas pelos órgãos de Segurança Pública na Amazônia. A atitude é complexa e envolve questões sociais, culturais e cosmologias que vão além do conhecimento da sociedade. Segundo antropólogos, para alguns povos indígenas, a morte não encerra a existência humana. Entre as causas para o suicídio indígena estão paixões, encantamentos e rupturas culturais sob um contexto de perda de território e direitos.
“Temos debates para mostrar a complexidade e a dimensão profunda de todo o aspecto que envolve [o suicídio indígena] e que está situada em cosmologias indígenas pouco conhecidas, por isso a tendência é projetar o nosso drama do suicídio para estas sociedades”, explica o antropólogo Gilton Mendes, coordenador da mesa-redonda sobre “Suicídio entre os Povos Indígenas” promovida pelo Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (Neai) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), nesta quarta-feira (29).
Mesa-redonda promovida pelo Neai. Foto: Izabel Santos/Portal Amazônia

Na opinião de Mendes, trata-se de um fenômeno complexo que preocupa, de modo geral, pelas concepções da sociedade não-indígena. “Mas outras sociedades também têm esse fenômeno de forma bastante diversa”, acrescenta.
Ataque de espíritos e paixões
A tese de doutorado da antropóloga da Universidade Federal do Pará (UFPA), Beatriz Matos, abordou o suicídio por ataques de espíritos entre os matsés. O povo vive na terra indígena do Vale do Javari, a maior do Brasil e com maior concentração de povos isolados.
Entre as razões apontadas pela pesquisa, está a impossibilidade de realização de um importante ritual de iniciação masculina. “Nesse ritual, que começava na aldeia, os espíritos levavam os jovens para a floresta onde ele era completado. Com a chegada dos missionários, a prática foi interrompida”, conta. Homens e mulheres participavam do ritual, mas o protagonismo era masculino. De acordo com relatos dos matsés, a tradição foi interrompida na década de 1970. “Com isso, os espíritos começaram a atacar os jovens e a provocar o que nossa sociedade chama de suicídio”, explica.
Os jovens ‘atacados’ relatam que tinham a visão do espírito de um parente já falecido, que aparecia quando eles estavam sozinhos e os levava para a floresta. “Quem viu, relata que no momento desses ataques os jovens corriam mata a dentro”. Alguns eram resgatados, mas outros não tinham o mesmo destino.
Na avaliação da antropóloga do Museu Nacional, Luisa Belaúnde, os suicídios também são homicídios provocados por espíritos, mas também um problema de saúde pública. Luisa cita o aspecto das paixões ou encantamentos que levam os indígenas à atitude. “As causas podem ser o alcoolismo, a presença de missionários e a desintegração familiar, mas isso tudo acontece em um pano de fundo de perda de território e direitos”, diz.
“É realmente um problema de saúde pública, mas talvez a aproximação a partir da saúde pública, que procura as causas, e que tenta formular políticas de prevenção, não esteja suficientemente aberta para compreender as razões histórias e políticas do sofrimento ao qual muitos povos indígenas estão atualmente submetidos”, opina.
Como exemplo sobre os encantamentos, a antropóloga cita os kaxinauá, que habitam a fronteira entre o Peru e o Brasil, no Acre. Segundo relatos, os caçadores desse povo estão sujeitos a um encantamento pelo olfato. “Quando eles estão na floresta eles sentem um cheiro semelhante ao de um animal, então eles se encantam, ficam apaixonados por esse cheiro. Voltam para a aldeia e ficam com o olhar perdido, deixam de reconhecer os seus parentes e passam a comer terra. Por fim, acabam se matando”.
Luisa também cita as meninas tikuna, que vivem na fronteira entre Peru, Equador e Colômbia. E compara a situação a dos matsés no Javari, onde a prática tem a ver com a quebra da tradição do ritual da menina nova, que marca a transição da infância para a vida adulta. “Nesse ritual a menina fica sentada por várias horas, tem os cabelos arrancados e fica ouvindo os conselhos dos mais velhos, mas ele não é só isso. Durante o ritual ela aprende a ter paciência, a resistir a dor e a não se deixar enganar pelos espíritos, que também participam do ritual e tentam enganá-la”, explica a antropóloga. Sem o ritual, a menina tikuna não aprende a se defender e se deixa enganar pelas pessoas erradas.
“Ele [o suicídio] é mais comum entre as meninas que frequentam a escola, conhecem rapazes por quem não deveriam se apaixonar e acabam se desiludindo”, explica. “Por isso é um homicídio espiritual. É como se os espíritos ficassem com raiva e levassem a essa atitude”, explica. A maioria dos suicídios acontecem por enforcamento. As meninas que sobrevivem, alegam que não estavam atentando contra a própria vida, dizem que foram induzidas, que viram parentes já mortos e que pediam que elas cometessem o ato.
Os suruwaha e o timbó
Os suruwaha vivem na calha do rio Juruá, no Amazonas. São um grupo único com cerca de 150 pessoas praticamente isoladas. O único contato que têm é com funcionários da Fundação Nacional do Índio (Funai). No entanto, a maioria das mortes entre este povo decorre de suicídio por envenenamento com timbó, uma raiz usada para envenenar a água e matar peixes. “Existem mortes por doenças e incidentes com animais, mas são poucas”, explica o antropólogo Miguel Aparicio, autor da obra ‘Presas del Veneno. Cosmopolítica y Transformaciones Suruwaha’.
O antropólogo descreve os indígenas como um povo coeso e de boa memória. “Se você perguntar, eles são capazes de descrever o tataravô da terceira geração e com quem era casado e tudo mais”, revela. Entre estas memórias, está o primeiro suicídio, ocorrido em 1930.
As razões para a atitude não são claras. Os primeiros contatos com os suruwaha datam de 1920. “Eles sofreram com as expedições de seringalistas e conseguiram voltar ao isolamento em 1930. Somente em 1980 eles voltaram a ser contatados, e por causa da pressão madereira na região”, explica Aparicio. 

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