domingo, 27 de novembro de 2011

Índia: Avanço, mas não de tigre. De elefante



Abaixo uma matéria que foi publicada na Revista Veja, ainda no ano de 2006, sobre a Índia.  São passados cinco anos, mas a matéria é de interesse, por apresentar boas informações sobre a realidade indiana.
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O gigante asiático está crescendo em ritmo acelerado, mas precisa arrastar o peso da pobreza e de sua complexidade social


Carlos Graieb - http://veja.abril.com.br

Fotos Paulo Vitale
ETERNA CONFUSÃO
A multidão toma as ruas em Hyderabad, uma das cidades-símbolo da nova Índia


NESTA REPORTAGEM
Quadro: Um gigante da diversidade

EXCLUSIVO ON-LINE
Outras imagens
Conheça o País: Índia

Quando um país contém em suas fronteiras um sexto da população do planeta, seu sucesso ou seu fracasso não são um assunto banal. A Índia é um país assim. Ela tem atualmente 1,1 bilhão de habitantes. Em 2050, o número terá saltado para 1,6 bilhão. Próspera, ela será uma superpotência. Estagnada, um cenário dantesco de miséria. Neste exato momento, os dados estão sendo lançados. As notícias são auspiciosas. Pela primeira vez desde sua independência do Império Britânico, em 1947, a Índia aparece aos olhos do mundo como um país viável e uma economia no rumo da riqueza. As taxas de expansão do PIB só ficam atrás das da China. Durante duas décadas elas foram da ordem de 6% ao ano. Em 2005, chegaram a 8,1%, e não existe ameaça imediata de que venham a cair. Um aspecto excepcional dessa explosão é o fato de ser guiada pelo setor de serviços. A Índia não acena ao mundo com alimentos ou produtos manufaturados, mas sobretudo com soluções baratas e engenhosas em campos como o da tecnologia da informação e o da pesquisa farmacêutica. Mais do que outras nações emergentes, ela tem usado os novos meios de comunicação para influir na economia internacional, monitorando a distância redes de computação ou atendendo em seus call centers pessoas que se encontram em outros continentes. Nesse aspecto, a Índia está na vanguarda da globalização. Difundiu-se, além disso, um sentimento de urgência entre seus empresários, formadores de opinião e jovens profissionais. A ambição e a ousadia são encorajadas. Vistos de imigração para os Estados Unidos ou a Europa ainda são cobiçados, mas muitos alunos recém-saídos da universidade preferem tentar a sorte no país. A sensação é que a oportunidade está batendo à porta, e não pode ser desperdiçada.
A Índia já teve muitas décadas perdidas. Seu primeiro líder depois da independência, Jawaharlal Nehru, foi um político admirável em diversos sentidos, mas implementou um regime estatista que sufocou a iniciativa no país. Vivia-se no "reino das licenças". "Quem quisesse comprar um carro ou conseguir um telefone tinha de entrar em imensas listas de espera. Importar um computador requeria dezenas de visitas à burocracia", lembra Kamal Nath, o ministro do Comércio e da Indústria. Essa jaula de ferro começou a ser desmontada em 1991, quando uma grave crise fiscal obrigou o governo a tomar medidas liberalizantes. Isso fez com que o desejo de empreender voltasse a correr nas veias dos indianos. "Quando pensamos nos fatores que podem garantir o futuro da Índia, devemos certamente contar entre eles sua classe de empresários", explica o economista Suman Bery, diretor do Conselho Nacional de Pesquisa Econômica Aplicada.

FACES DE MUMBAI
A maior metrópole da Índia é cheia de contrastes: acima, prédios decrépitos convivem com arranha-céus na orla; abaixo, a herança da arquitetura colonial

Segundo a revista Forbes, a Índia tem hoje 23 bilionários. São pessoas como Lakshmi Mittal, o quinto homem mais rico do mundo, com um patrimônio de 23,5 bilhões de dólares amealhados na siderurgia. Como os irmãos Mukesh e Anil Ambani, que dirigem a Reliance, o maior grupo privado da Índia, com faturamento de 23 bilhões de dólares em 2005, sobretudo na área de refino de combustíveis. Ou como Azim Premji, controlador da Wipro, uma gigante do setor de tecnologia. Mais do que o pitoresco surgimento dos bilionários, porém, o que importa na Índia são as massas, sempre as massas. Duzentos e cinqüenta milhões de indianos – duas Nigérias – ainda vivem na miséria extrema. O número vai caindo pouco a pouco, ao passo que vai aumentando, alguns degraus acima, o contingente dos que fincam pé na classe média. Nos últimos quinze anos a classe média indiana triplicou de tamanho. Conta hoje com 300 milhões de pessoas – dois terços da União Européia.
Banais por si próprias, são histórias como a do engenheiro Ashok Kumar, de 22 anos, que fazem a diferença. Ele acabou de receber seu diploma e enfrenta um doce dilema: não sabe como contar aos pais os detalhes de seu primeiro emprego. Sua família é de origem modesta. Integrante da comunidade dos jats, uma das centenas de subcastas do hinduísmo, seu pai seguiu as tradições e vive da agricultura. Ele tem cinco acres de terra perto de Nova Délhi e a lavoura lhe garante 650 dólares por ano. É por isso que Ashok hesita em lhe falar do trabalho que conseguiu. A multinacional francesa que o contratou, e que desenvolve tecnologia para extração de gás e petróleo, vai lhe pagar 4 000 dólares por mês. O salário é seis vezes maior que a renda anual de seu pai. "Ele vai ficar orgulhoso, mas talvez seja um pouco chocante", diz o jovem. Diversos colegas de Ashok na universidade vivem a mesma situação. Eles vão entrar no mercado de trabalho embolsando quantias que seus pais ou irmãos mais velhos jamais esperaram ganhar.
Pessoas como Ashok Kumar contam com um pouco de sorte e muita determinação para chegar ao ensino superior. A educação primária só se tornou obrigatória na Índia em 2001. Segundo as estatísticas oficiais, 75% das crianças abandonam o colégio na 8ª série e 85% no ensino médio. Feitas todas as subtrações, são 2,5 milhões de pessoas que saem da universidade a cada ano. Essa é uma questão-chave. Se não conseguir ampliar suas taxas de escolaridade, a Índia terá dificuldades para dar um salto industrial e, pior que isso, poderá ver abortado o seu vôo, até agora notável, no campo tecnológico. Segundo um estudo da consultoria McKinsey, em 2010 haverá demanda para 500.000 profissionais qualificados nos campos da tecnologia da informação (TI) e nos centros de atendimento e assistência técnica remotos – os quais a Índia domina. O país detém 65% do mercado mundial de TI e 46% do de atendimento remoto. A preocupação, portanto, não é criar vagas, mas supri-las com mão-de-obra qualificada. Segundo a McKinsey, apenas um quarto dos engenheiros indianos chega hoje "pronto" às companhias de TI.

EM TRÂNSITO
Nas ruas indianas, os carros dividem espaço com o transporte em bicicletas e outros meios
A Índia tem instituições de ensino superior que se encontram entre as melhores do mundo. Os Institutos Indianos de Administração e, sobretudo, os Institutos Indianos de Tecnologia (IITs) são a nata desse sistema. Ao todo, há sete IITs, em sete cidades. Mantidos pelo governo federal, eles são um símbolo e também uma das causas da ascensão da Índia ao mundo da tecnologia. A simplicidade de seu ambiente pode ser enganosa. No fim da tarde, professores se reúnem pachorrentamente – e descalços – num laboratório do IIT de Roorkee, onde Ashok Kumar estudou, mas seus alunos certamente receberão uma educação de ponta. Todos os anos, empresas indianas e multinacionais mandam olheiros para recrutar esses alunos, seja para seus escritórios locais, seja para outras partes do mundo. A luta para ingressar num IIT é feroz. Lá dentro, o mesmo espírito competitivo prevalece. Toda uma mitologia se formou em torno dessas escolas. Até mesmo um romance já foi escrito sobre elas e se tornou best-seller (trata-se da sátira Five Point Someone,título que livremente poderia ser traduzido como O Aluno Medíocre). Os homens são a esmagadora maioria nos IITs, mas as moças também estão lá. No IIT de Roorkee são 343 entre 3.266 rapazes. Para elas, além dos possíveis ganhos em dinheiro, a educação significa um novo tipo de controle sobre a própria vida. Diz a estudante de engenharia Gitanjali Prasad: "Eu certamente quero me casar, mas também quero dedicar tempo à minha carreira".
O casamento nos moldes tradicionais continua sendo uma instituição não apenas central como muito bem-aceita na vida indiana, mesmo entre os jovens urbanos. Por moldes tradicionais entenda-se coisas como o casamento arranjado – freqüentemente com a ajuda de vistosos anúncios nos cadernos matrimoniais, que são a parte mais importante dos jornais de domingo – e a mudança dos noivos para a casa dos pais dele depois da celebração. Mas a tolerância para "arranjos alternativos" cresceu bastante, e a vida profissional das mulheres é um fator importante nisso. A idéia do divórcio é sempre recebida com um balanço pesaroso de cabeça, mas ela já não é anátema como dez ou quinze anos atrás. Os carinhos públicos de casais não são algo fácil de ver na Índia. Nos filmes de Bollywood, só agora os primeiros beijos estão aparecendo – "muito desajeitados e precisando de treino", como diz a escritora Shobha Dé. Nos clubes noturnos de uma cidade agitada como Mumbai é a mesma coisa: muita dança sensual embalada por canções estrangeiras ou indianas, muita carne exposta por saias e miniblusas, mas também a preservação quase universal dos limites, digamos, do bom-tom. Informalmente, contudo, os jovens reconhecem que o sexo pré-marital é bem mais comum do que se possa julgar.

OS POBRES NA CIDADE
Uma espécie de lavanderia coletiva a céu aberto em Mumbai (à esq.) e dois garotos mendigando numa avenida de Hyderabad (à dir.): em nenhum lugar público da Índia é possível desviar os olhos da miséria
A cultura do hedonismo e do consumo está dando os primeiros passos na Índia. Os cirurgiões plásticos são bastante requisitados, mas com discrição; o Botox foi liberado para uso cosmético apenas em meados de maio. À mesa, o vinho é um hábito que está sendo rapidamente adquirido pelas classes emergentes. "O primeiro clube de degustação surgiu em Mumbai em 1992, e agora já há mais de 5.000 pelo país", diz o empresário S.G. Chougule, que dedica seu tempo livre à pesquisa de cepas de uva que possam ser plantadas na Índia (ele é dono de uma vinícola, cujos produtos levam a marca Indage). Um fenômeno discutido por todos os observadores da vida social é o surgimento da "página 3" nos grandes jornais. Pessoas da página 3 são celebridades: estrelas de cinema, obviamente, já que Bollywood é a principal indústria de entretenimento da Índia, muito à frente da televisão, mas também jovens estilistas como Manish Arora e escritoras como Shobha Dé. As grifes estrangeiras marcam presença no país e muitos jovens que podem comprá-las as estão usando como emblemas de identidade. Mas não há sinal de que o indiano, até mesmo o mais afluente, venha a ter com as grifes uma relação remotamente parecida com a que têm os japoneses – entre outras coisas, porque roupas tradicionais como o sari têm presença garantida no cotidiano tanto quanto nas celebrações.

Ravendran/AFP
AP
VOZES DA POLÍTICA
O premiê Manmohan Singh com Bush (no topo, à esq.), os líderes do partido nacionalista BJP, da oposição (acima), e uma passeata estudantil (abaixo): democracia à indiana
AP
Durante o último Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, a Índia foi uma vedete com seus números de crescimento. Outdoors brilhavam com a frase "Índia inacreditável". Mas o slogan ganha significado irônico assim que se pisa no país. A precariedade da infra-estrutura indiana é um tapa na cara de qualquer visitante, até mesmo o brasileiro, familiarizado com problemas de trânsito e de abastecimento d'água, com favelas e lixões. Os aeroportos são barracões depauperados. Os blecautes de energia são rotina. Qualquer incursão nas estradas é uma aventura que oscila entre o cômico e o assustador. Cada avanço tem de ser negociado com veículos de todo tipo, inclusive carroças e tratores que surgem do mato sem aviso prévio. A frota de automóveis da Índia se moderniza aos poucos, mas ônibus e caminhões são em geral decrépitos; seus pára-choques trazem a inscrição "buzine, por favor". As estradas são estreitas e cheias de buracos. Dos 2,5 milhões de quilômetros da malha rodoviária nacional, menos de 10% são modernos e bem conservados. Quanto às metrópoles – bem, como já dito, o Brasil não é um caso de urbanização feliz, mas a Índia é ainda pior.
Cidades como Bangalore ou Mumbai ameaçam estourar. Dotada de um clima ameno, Bangalore foi uma das localidades preferidas dos colonizadores britânicos, que nela criaram parques e comodidades. Mais tarde ela se tornou "o paraíso dos aposentados". Finalmente, nos anos 90, um novo apelido entrou em voga: "Vale do Silício indiano", referência às empresas de tecnologia que se instalaram ali. Mas o sucesso econômico não foi acompanhado por esforços de organização. A cidade hoje padece de imensos congestionamentos, esgotos a céu aberto e favelas cada vez mais apinhadas. Outro exemplo impressionante é o de Mumbai. Trata-se da cidade mais populosa da Ásia, com 14 milhões de habitantes. Toda essa gente se espreme numa faixa estreita de terra, na verdade uma ilha. Novos subúrbios começaram a despontar recentemente, mas eles não bastam para desafogar a metrópole. Exércitos de mendigos se movem pelas ruas. Outras manchas de pobreza marcam a paisagem: bairros labirínticos onde vivem muçulmanos; cortiços ligados a tecelagens falidas; favelas "modernas", com casebres de madeira. Centro financeiro e cultural, Mumbai também tem muitos ricos. Mas até os bairros nobres transpiram decadência. A culpa é de uma lei dos anos 40, que torna quase impossível promover um despejo. Projetos para derrubar a lei vêm à baila de tempos em tempos e são abandonados assim que os proponentes se dão conta de seu possível custo político. Sem poder dispor de seus imóveis, os proprietários deixaram de conservá-los e eles foram se deteriorando, batidos pelas monções. Se a Baía de Guanabara lembra uma boca banguela, como disse o antropólogo Claude Lévi-Strauss, a baía central de Mumbai é uma boca com dentes podres.

Paulo Vitale
CELEBRAÇÃO
Todos os dias, ao crepúsculo, centenas de peregrinos se reúnem para rezar às margens do Rio Ganges em Haridwar, uma das cidades sagradas do hinduísmo

NOVA FRONTEIRA: O SETOR FARMACÊUTICO

Fotos Paulo Vitale
PESQUISA
Química da Dr. Reddy's em Hyderabad
Em 2003, uma idéia ousada foi posta em circulação pelos médicos ingleses Nick Wald e Malcolm Law: a criação de uma "polipílula" que contivesse aspirina, estatina, hipertensivos e ácido fólico, ou seja, os remédios que previnem doenças cardíacas. Estima-se que essas doenças provoquem 30% das mortes anuais no mundo. Um dos fatores que dificultam seu combate é a necessidade de usar tantos medicamentos juntos. Se a polipílula fosse difundida, disseram os médicos, ela poderia reduzir em 80% os casos de infarto, por exemplo. O artigo causou e ainda causa discussões. Mas agora a controvérsia vai entrar em outra fase. A polipílula já existe. Ela foi desenvolvida pelo laboratório indiano Dr. Reddy's, de Hyderabad, e começou a ser testada em maio. "É um projeto de ambição global. Vamos fazer testes em vários países, inclusive o Brasil", diz o presidente da Dr. Reddy's, G.V. Prasad.
A polipílula pode ou não se mostrar viável. O fato de que tenha sido criada, contudo, atesta o vigor da emergente indústria farmacêutica indiana. Os laboratórios Dr. Reddy's ainda são uma exceção por seu pesado investimento em pesquisa – uma paixão de seu fundador, o cientista Anji Reddy. Mas outras empresas como a Ranbaxy (a líder na Índia) despontam no mercado internacional. O principal negócio delas é produzir genéricos. Nos próximos dois anos, as patentes de mais de quarenta medicamentos importantes devem expirar e os indianos querem abocanhar parte desse mercado. Mas eles também exploram outras rotas de crescimento, como a terceirização das pesquisas. Como já aconteceu no campo da tecnologia de informação, laboratórios do mundo todo estão entregando à Índia tarefas como a de descobrir processos que barateiem a produção de moléculas que eles descobriram.


EXISTE INTERNET EM HINDI?

O FILHO PRÓDIGO
Arvind Jain, diretor do Google em Bangalore: ele voltou dos Estados Unidos
Pouco depois de formar-se num dos prestigiosos Institutos Indianos de Tecnologia, o engenheiro Arvind Jain mudou-se para o Vale do Silício, região que concentra a indústria da tecnologia nos Estados Unidos. Passou dez anos lá, mas quando o Google lhe ofereceu a oportunidade de comandar seu escritório de Bangalore ele não hesitou em voltar para casa. "A Índia é um dos lugares mais excitantes do mundo para quem trabalha com tecnologia atualmente. Eu queria ver em que pé estava a revolução", afirma Jain. Um de seus projetos era criar produtos de aplicação global, e ele teve sucesso. O serviço Google Finance, que à maneira típica do megaportal de busca pretende tornar disponível "toda a informação econômica do planeta", entrou em funcionamento em março e foi criado pela equipe coordenada por Jain. Mas há um outro desafio em vista, talvez mais complicado: ampliar a penetração da internet na própria Índia.
Atualmente, menos de 2% da população indiana utiliza a rede. Um dos motivos para isso é a pobreza. Em 2003, havia 7,2 computadores para cada 1 000 pessoas na Índia, contra 658,9 nos Estados Unidos, 74,8 no Brasil e 27,6 na China. Porém, a diversidade cultural é uma dificuldade tão grande quanto a economia. Apenas cerca de 10% dos indianos dominam o inglês, mas 80% do conteúdo de internet no país é nessa língua. Sim, há sites em hindi, marathi, tamil e outras línguas oficiais e dialetos. Entretanto, é difícil encontrá-los na vastidão da rede. Diz Jain: "Tornar mais acessível esse tipo de conteúdo é essencial para aproximar o indiano comum da internet. E nesse tipo de coisa o Google é bom".

OFERTAS DE LUXO

FASHION
Prasad: a Zegna chega à Índia

"O que tem mantido minha sanidade é a motocicleta", diz o economista Rahul Prasad, de 37 anos. Nascido na Índia, mas radicado em Nova York e Londres desde os anos 90, ele está em Mumbai para cuidar da instalação da primeira loja da grife Ermenegildo Zegna no país. A cidade o está deprimindo, e ele usa sua Kawasaki para espairecer. Supervisor da Zegna no sul da Ásia, Prasad visita com freqüência os países vizinhos. "Gostaria que as cidades indianas oferecessem 10% do conforto de Xangai", diz.
A loja da Zegna será no espaço onde funcionou um clube noturno no célebre hotel Taj Mahal. Hotéis cinco-estrelas concentram o comércio de luxo na Índia. Eles são ambientes exclusivos, para os quais aflui a minúscula parcela da população que despertou para o alto consumo. "Trabalhamos com uma base de 0,2% da população", diz Prasad. Mas, como em outros mercados na Índia, espera-se um crescimento exponencial. É por isso que grifes como Armani e Gucci se apressam para entrar no país. Eles apostam num dado econômico e em outro cultural. O consumo interno privado responde por uma fatia elevada da economia indiana, 64% (contra 42% na China). O "consumismo" tem um papel importante na ascensão do país. Além disso, os jovens cada vez mais dão valor a marcas. "Sempre haverá lugar para as roupas tradicionais na Índia", diz Prasad. "Mas as pessoas estão se identificando pelo que vestem."

CONTRA AS CASTAS

O DALIT
O economista Narendra Jadhav com o quadro de seu ídolo, o Dr. Ambedkar: "Por que não chamá-lo de deus? Ele transformou os párias em gente"
Na vila onde nasceu, Damu Jadhav dedicava-se a ocupações penosas, como cuidar de cadáveres. Sua posição na sociedade o obrigava a isso: ele era um intocável. Obstinadamente, ele rompeu essas amarras. Os maiores beneficiários foram seus filhos, a quem conseguiu educar. O mais jovem deles é o homem da foto ao lado, Narendra Jadhav. Ele é um dos principais economistas do Banco Central da Índia. Atualmente, encontra-se no Afeganistão, onde chefia, a convite do governo americano, a equipe que recria as instituições financeiras do país. "Meu pai me ensinou a nunca me contentar com a mediocridade", diz Jadhav. "É lamentável que seu próprio talento tenha sido desperdiçado pela maior iniqüidade da história humana, o sistema de castas da Índia."
Jadhav é um homem enérgico e provocador. No elegante Clube de Críquete de Mumbai que gosta de freqüentar, os empregados o olham com reverência. "Transmito a idéia de que é possível ascender na vida", diz. O próprio Jadhav reverencia uma única figura na história indiana, o Dr. Ambedkar. Foi ele quem lançou as bases políticas e legais para que a intocabilidade fosse abolida. "Por que não chamá-lo de deus? Ele transformou os intocáveis em homens", afirma. Jadhav é um participante ativo na vida intelectual da Índia. Lançou um livro em que narra a saga de sua família. Também escreve para os jornais. Afirma que a reserva de cotas para dalits (palavra que substituiu "intocáveis" no vocabulário indiano) nas universidades e no mercado de trabalho é indispensável. "A luta é para que um dia elas possam ser dispensadas. Mas no momento são necessárias para compensar 3 000 anos de opressão."

Especial

Paulo Vitale
Quando a Índia se tornou independente do Império Britânico, ela herdou instituições legais e políticas de cunho democrático. Sua primeira geração de líderes teve a sabedoria de construir sobre esses alicerces, em vez de rejeitá-los. Exceto por um breve "período de emergência", no fim da década de 70, o regime democrático indiano se mantém intacto há sessenta anos. Trata-se de uma vantagem inegável na luta pela modernidade. Num país autoritário como a China, demandas futuras por maior liberdade podem resultar em caos. A democracia indiana é uma promessa de estabilidade a longo prazo. No dia-a-dia, contudo, não são poucos seus problemas. Como a corrupção, por exemplo. Segundo a ONG Transparência Internacional, essa é uma praga ainda mais indiana do que brasileira. Lá como aqui, o financiamento de campanhas é um processo vergonhoso. "O aspecto mais repugnante da corrupção na Índia não é a sua extensão, mas o fato de ela estar sendo aceita como algo inevitável", afirma o economista Bimal Jalan, que foi presidente do banco central indiano entre 1997 e 2003. Também não são poucas as pressões depositadas sobre a esfera política. Elas decorrem do ancestral sistema de castas, dos conflitos ideológicos e religiosos e de uma estonteante diversidade regional e cultural (sobre esta última, basta dizer que há dezoito línguas oficiais na Índia e cerca de 2.000 dialetos).
Um chiste famoso, atribuído à ex-primeira-ministra Indira Gandhi, diz que a Índia não é um cadinho onde as coisas se fundem, e sim um prato de salada onde elas se misturam. Em termos mais abstratos, isso significa que a Índia abraça a filosofia do pluralismo. Há quem diga, no entanto, que o país tem uma essência, e que essa essência é hindu. O principal defensor dessa idéia é o BJP, que dirigiu a Índia de 1999 a 2004 e hoje lidera a oposição. "Não somos sectários. Não queremos criar divisões. Nossa política pode se resumir numa frase, a nação antes de tudo", diz o porta-voz do partido, Prakash Javadekar. Quando estava no governo, porém, o BJP tomou medidas como encomendar uma revisão dos livros de história adotados nas escolas, tornando-os doutrinários. Além disso, há bons indícios de que suas lideranças podem alimentar conflitos em regiões do país sob sua influência. Quatro anos atrás, mais de 2.000 pessoas da minoria muçulmana foram linchadas no estado de Gujarat. No mês passado, duas noites de terror reavivaram a memória desse massacre. Seis muçulmanos foram mortos depois de protestos contra a demolição de uma mesquita na cidade de Ahmedabad. Um deles foi queimado dentro de seu carro. O Exército interveio antes que houvesse uma escalada de violência. As tropas, no entanto, foram acionadas pelo governo central, pois corria a suspeita de que a polícia local fechava os ouvidos aos pedidos de socorro. Hoje, como em 2002, Gujarat é governado pelo BJP.
Paulo Vitale
NA PASSARELADesfile de moda em Nova Délhi: o mercado indiano está na mira das grifes internacionais


O sistema de castas da religião hindu representa outro enorme desafio para a Índia. Segundo os textos sagrados, uma entidade cósmica, Purusha, sacrificou seu corpo para criar a humanidade. De sua boca surgiram os brâmanes, a casta sacerdotal. De seus braços vieram os guerreiros e os proprietários de terra, batizados de xátrias. Das pernas saíram os comerciantes, ou vaixás. Finalmente, dos pés do gigante brotou a casta dos sudras, os trabalhadores braçais. A humanidade terminava aí; para além de suas fronteiras ficavam os "intocáveis", submetidos a toda espécie de jugo e humilhação. Por mais que se fale em secularização, esse sistema ainda permeia a vida social da Índia. Desde o berço as pessoas desenvolvem sensores para identificar a posição de um indivíduo no painel das castas com base em seu nome ou em seu tom de pele. Na verdade, a classificação é ainda mais sutil, pois há centenas de subcastas associadas às ocupações e à origem geográfica. O estrangeiro a quem dizem que as castas são coisa do passado (e essa afirmação é feita com alguma freqüência) precisa apenas folhear os anúncios matrimoniais dos jornais de domingo para certificar-se do contrário. Cada anúncio lista os atributos do pretendente e suas exigências. É possível dividir os classificados entre aqueles que requerem, ou não, um noivo de casta específica.
Em 1950, a discriminação com base nas castas ganhou limites legais. A Constituição indiana promulgada naquele ano aboliu a intocabilidade e inaugurou uma nova era: a da ação afirmativa. Nas décadas que se seguiram, vários programas foram criados para promover a ascensão social dos antigos intocáveis (que se rebatizaram como dalits, ou "oprimidos") e também dos integrantes de subcastas mais pobres. É um assunto que não pára de ferver. Neste exato momento, a Índia está em agitação por causa dele. Uma nova lei acaba de aumentar as cotas destinadas a dalits e congêneres nas universidades e no serviço público. A reserva, que era de 22,5% das vagas, pulou para 49% delas. Nem todos os que se opõem à medida – entre eles estudantes que no mês passado chegaram a ter confrontos violentos com a polícia nas ruas de Nova Délhi – o fazem por preconceito. Eles têm argumentos respeitáveis, como o de que um sistema de cotas tão ampliado põe em perigo a meritocracia nas universidades. Uma das acusações mais repetidas durante o período em que se discutiu a nova lei foi a de que seu objetivo era simplesmente conquistar o voto dalit. Em outras palavras, ela seria uma medida populista.
Como observam alguns – entre eles o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen –, ação afirmativa com base em castas não beneficia necessariamente os mais pobres. Nos últimos cinqüenta anos, por exemplo, muitos dalits enriqueceram, o que significa que seus filhos não precisam de mais benefícios. Na verdade, mesmo tomados em conjunto, os antigos intocáveis já não representam o degrau mais baixo da pirâmide social. "Pode-se dizer que a situação dos dalits é hoje um pouco melhor que a dos muçulmanos", afirma Mohammad Hamid Ansari, diretor da Comissão de Minorias da Índia. Num país onde 300 milhões de pessoas vivem com menos de 1 dólar por dia, a miséria não faz mesmo muitas distinções. Nesse panorama, medidas que poderiam fazer a diferença são em áreas como alfabetização e saúde pública. Mas elas não ganham corpo. Quase metade da população indiana continua analfabeta. O número de aidéticos é o segundo maior do mundo.
Se o Estado indiano não consegue arquitetar grandes medidas sociais, apesar de toda a retórica sobre ajuda aos pobres, a boa notícia é que no plano econômico um consenso está firmado. Os dois partidos de expressão nacional, o Congresso e o BJP, concordam sobre o que fazer para manter as boas taxas de crescimento. A conjuntura política pode acelerar ou brecar reformas, mas é improvável que mude seus rumos. O atual primeiro-ministro, Manmohan Singh, foi artífice do primeiro grande choque de liberalização da economia indiana, em 1991. Esperava-se que ele fosse ousado ao assumir seu cargo atual, mas não é isso o que vem ocorrendo. Um dos grandes debates do momento na Índia diz respeito ao setor de varejo. Um visitante que percorra o país cedo ou tarde se dá conta da ausência de supermercados. Multinacionais como Wal-Mart e Carrefour estão ávidas para entrar na Índia, e gigantes locais como o grupo Reliance têm planos para o setor. Mas o possível impacto da abertura sobre os milhões de pequenos negócios familiares que abastecem o indiano com os produtos do dia-a-dia refreia a mudança. "Vamos promover transformações, mas ainda não sabemos qual modelo aplicar", diz o ministro do Comércio e Indústria, Kamal Nath. Sua fala cautelosa reflete as negociações entre o partido do Congresso e agremiações de esquerda que o apóiam. Significa demora, mas não que as amarras deixarão de ser abolidas. E o fim das amarras tem mostrado ser suficiente para levar adiante um povo que demonstra ser obstinado e confiante. 

Paulo Vitale
FUNK À INDIANAA cena noturna de Mumbai é agitada. Há de tudo entre os jovens, do consumo de ecstasy ao sexo casual. Só os carinhos em público são raros

A Índia tem sido descrita como um formidável Tigre Asiático. Pergunte a um indiano, porém, e ele vai preferir a metáfora do elefante. Pode haver um pouco de superstição aí. Ganesh, a adorada divindade hinduísta, tem a cabeça daquele animal. Ele é o deus da prosperidade e do sucesso. Mas outros significados estão em jogo. Primeiro, a idéia de que tanto quanto a China, simbolizada pelo dragão, a Índia é um ser à parte entre os países emergentes. Em segundo lugar, a percepção de que os desafios ainda são imensos num país tão grande e cheio de diversidade. "O elefante é corpulento", diz Gurcharan Das, ex-presidente da Procter&Gamble na Índia e hoje um influente comentarista de assuntos nacionais. "Ele tem força e resistência, mas não tem agilidade. O mesmo se aplica a nós. Estamos no caminho certo, mas não vamos eliminar nossos problemas num salto." É realmente adequado ver a Índia nesses termos. Por onde quer que se ande no país, a confiança e o impulso para a frente são palpáveis – assim como o peso que se precisa arrastar.

DIVÓRCIO POR CAUSA DO TÉDIO

Paulo Vitale
HIGH SOCIETYA escritora (e celebridade) Shobha Dé: "O novo indiano está cultivando uma maneira escancarada de lidar com dinheiro"
Em 1990, a escritora Shobha Dé chocou a Índia com o livroNoites de Socialite. O romance lançava um olhar indiscreto sobre a alta sociedade de Mumbai e tinha como heroína uma mulher que se divorciava (algo que a própria autora já havia feito). O principal motivo de escândalo, no entanto, foi a causa da separação: a personagem saía de casa não porque o marido fosse bêbado ou violento, mas pelo simples motivo de que o tédio havia se tornado pesado demais. "A sugestão de que isso fosse possível para uma mulher indiana era nada menos que ofensiva", diz a autora (que também pode ser definida como ex-modelo e celebridade).
Passados quinze anos, Shobha Dé acha que a situação mudou bastante, pelo menos entre a elite urbana. Mãe de seis filhos e mulher de um ex-armador de navios atualmente envolvido com finanças, ela defende o casamento em seu mais recente livro. "Saltamos para o outro extremo. A geração de meus filhos não quer se comprometer com nada. Exceto, talvez, com seu telefone celular." A mania de consumo é, aliás, a outra grande transformação que ela identifica na sociedade, ao lado dos novos padrões de relação amorosa. "Antigamente havia um grande pudor em exibir riqueza. Tudo isso foi embora. O novo indiano está cultivando uma maneira escancarada de lidar com o dinheiro."


"EU ESCREVO PARA CAUSAR RAIVA"

Paulo Vitale
A DISSIDENTEA escritora Arundhati Roy: admirada pelos jovens, mas não modelo de comportamento

Quem bate à porta da escritora Arundhati Roy, em Nova Délhi, encontra um cartaz pendurado onde se lê: "Não sou um modelo de comportamento ***" (os asteriscos correspondem a um palavrão). O aviso era desnecessário. Nos últimos anos, Arundhati tornou-se uma das personalidades mais admiradas pelos jovens indianos, mas é difícil imaginar alguém realmente capaz de imitá-la. Ela e o marido vivem em casas separadas, numa sociedade onde o casamento ainda é guiado pela tradição. Seus escritos e intervenções públicas, além disso, a mantêm em permanente pé de guerra e já a levaram inclusive à prisão.
Em 1997, Arundhati lançou um romance, O Deus das Pequenas Coisas (editado no Brasil pela Companhia das Letras), e com ele conquistou um dos prêmios mais importantes da literatura em língua inglesa, o Booker Prize. O sucesso a deixou rica, mas, em vez de tentar repetir a fórmula, ela embarcou numa carreira de ativista política. Arundhati é uma das mais contundentes críticas da modernização indiana. Seus textos falam de fazendeiros endividados que se suicidam e de populações desalojadas pela construção de uma represa ou de uma planta industrial. "O escândalo é a total falta de salvaguardas para as pessoas mais vulneráveis", diz ela. O discurso de Arundhati é de um esquerdismo que nem sempre foge dos clichês e das teorias conspiratórias. Escondido sob o seu jeito muito manso, no entanto, há um traço encrenqueiro que explica a sua popularidade. "Eu escrevo para causar raiva", diz ela.

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