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Fotos Paulo Vitale |
ETERNA CONFUSÃO A multidão toma as ruas em Hyderabad, uma das cidades-símbolo da nova Índia |
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Quando um país contém em suas fronteiras um sexto da população do planeta, seu sucesso ou seu fracasso não são um assunto banal. A Índia é um país assim. Ela tem atualmente 1,1 bilhão de habitantes. Em 2050, o número terá saltado para 1,6 bilhão. Próspera, ela será uma superpotência. Estagnada, um cenário dantesco de miséria. Neste exato momento, os dados estão sendo lançados. As notícias são auspiciosas. Pela primeira vez desde sua independência do Império Britânico, em 1947, a Índia aparece aos olhos do mundo como um país viável e uma economia no rumo da riqueza. As taxas de expansão do PIB só ficam atrás das da China. Durante duas décadas elas foram da ordem de 6% ao ano. Em 2005, chegaram a 8,1%, e não existe ameaça imediata de que venham a cair. Um aspecto excepcional dessa explosão é o fato de ser guiada pelo setor de serviços. A Índia não acena ao mundo com alimentos ou produtos manufaturados, mas sobretudo com soluções baratas e engenhosas em campos como o da tecnologia da informação e o da pesquisa farmacêutica. Mais do que outras nações emergentes, ela tem usado os novos meios de comunicação para influir na economia internacional, monitorando a distância redes de computação ou atendendo em seus call centers pessoas que se encontram em outros continentes. Nesse aspecto, a Índia está na vanguarda da globalização. Difundiu-se, além disso, um sentimento de urgência entre seus empresários, formadores de opinião e jovens profissionais. A ambição e a ousadia são encorajadas. Vistos de imigração para os Estados Unidos ou a Europa ainda são cobiçados, mas muitos alunos recém-saídos da universidade preferem tentar a sorte no país. A sensação é que a oportunidade está batendo à porta, e não pode ser desperdiçada.
A Índia já teve muitas décadas perdidas. Seu primeiro líder depois da independência, Jawaharlal Nehru, foi um político admirável em diversos sentidos, mas implementou um regime estatista que sufocou a iniciativa no país. Vivia-se no "reino das licenças". "Quem quisesse comprar um carro ou conseguir um telefone tinha de entrar em imensas listas de espera. Importar um computador requeria dezenas de visitas à burocracia", lembra Kamal Nath, o ministro do Comércio e da Indústria. Essa jaula de ferro começou a ser desmontada em 1991, quando uma grave crise fiscal obrigou o governo a tomar medidas liberalizantes. Isso fez com que o desejo de empreender voltasse a correr nas veias dos indianos. "Quando pensamos nos fatores que podem garantir o futuro da Índia, devemos certamente contar entre eles sua classe de empresários", explica o economista Suman Bery, diretor do Conselho Nacional de Pesquisa Econômica Aplicada.
FACES DE MUMBAI A maior metrópole da Índia é cheia de contrastes: acima, prédios decrépitos convivem com arranha-céus na orla; abaixo, a herança da arquitetura colonial |
Segundo a revista Forbes, a Índia tem hoje 23 bilionários. São pessoas como Lakshmi Mittal, o quinto homem mais rico do mundo, com um patrimônio de 23,5 bilhões de dólares amealhados na siderurgia. Como os irmãos Mukesh e Anil Ambani, que dirigem a Reliance, o maior grupo privado da Índia, com faturamento de 23 bilhões de dólares em 2005, sobretudo na área de refino de combustíveis. Ou como Azim Premji, controlador da Wipro, uma gigante do setor de tecnologia. Mais do que o pitoresco surgimento dos bilionários, porém, o que importa na Índia são as massas, sempre as massas. Duzentos e cinqüenta milhões de indianos – duas Nigérias – ainda vivem na miséria extrema. O número vai caindo pouco a pouco, ao passo que vai aumentando, alguns degraus acima, o contingente dos que fincam pé na classe média. Nos últimos quinze anos a classe média indiana triplicou de tamanho. Conta hoje com 300 milhões de pessoas – dois terços da União Européia.
Banais por si próprias, são histórias como a do engenheiro Ashok Kumar, de 22 anos, que fazem a diferença. Ele acabou de receber seu diploma e enfrenta um doce dilema: não sabe como contar aos pais os detalhes de seu primeiro emprego. Sua família é de origem modesta. Integrante da comunidade dos jats, uma das centenas de subcastas do hinduísmo, seu pai seguiu as tradições e vive da agricultura. Ele tem cinco acres de terra perto de Nova Délhi e a lavoura lhe garante 650 dólares por ano. É por isso que Ashok hesita em lhe falar do trabalho que conseguiu. A multinacional francesa que o contratou, e que desenvolve tecnologia para extração de gás e petróleo, vai lhe pagar 4 000 dólares por mês. O salário é seis vezes maior que a renda anual de seu pai. "Ele vai ficar orgulhoso, mas talvez seja um pouco chocante", diz o jovem. Diversos colegas de Ashok na universidade vivem a mesma situação. Eles vão entrar no mercado de trabalho embolsando quantias que seus pais ou irmãos mais velhos jamais esperaram ganhar.
Pessoas como Ashok Kumar contam com um pouco de sorte e muita determinação para chegar ao ensino superior. A educação primária só se tornou obrigatória na Índia em 2001. Segundo as estatísticas oficiais, 75% das crianças abandonam o colégio na 8ª série e 85% no ensino médio. Feitas todas as subtrações, são 2,5 milhões de pessoas que saem da universidade a cada ano. Essa é uma questão-chave. Se não conseguir ampliar suas taxas de escolaridade, a Índia terá dificuldades para dar um salto industrial e, pior que isso, poderá ver abortado o seu vôo, até agora notável, no campo tecnológico. Segundo um estudo da consultoria McKinsey, em 2010 haverá demanda para 500.000 profissionais qualificados nos campos da tecnologia da informação (TI) e nos centros de atendimento e assistência técnica remotos – os quais a Índia domina. O país detém 65% do mercado mundial de TI e 46% do de atendimento remoto. A preocupação, portanto, não é criar vagas, mas supri-las com mão-de-obra qualificada. Segundo a McKinsey, apenas um quarto dos engenheiros indianos chega hoje "pronto" às companhias de TI.
EM TRÂNSITO Nas ruas indianas, os carros dividem espaço com o transporte em bicicletas e outros meios |
A Índia tem instituições de ensino superior que se encontram entre as melhores do mundo. Os Institutos Indianos de Administração e, sobretudo, os Institutos Indianos de Tecnologia (IITs) são a nata desse sistema. Ao todo, há sete IITs, em sete cidades. Mantidos pelo governo federal, eles são um símbolo e também uma das causas da ascensão da Índia ao mundo da tecnologia. A simplicidade de seu ambiente pode ser enganosa. No fim da tarde, professores se reúnem pachorrentamente – e descalços – num laboratório do IIT de Roorkee, onde Ashok Kumar estudou, mas seus alunos certamente receberão uma educação de ponta. Todos os anos, empresas indianas e multinacionais mandam olheiros para recrutar esses alunos, seja para seus escritórios locais, seja para outras partes do mundo. A luta para ingressar num IIT é feroz. Lá dentro, o mesmo espírito competitivo prevalece. Toda uma mitologia se formou em torno dessas escolas. Até mesmo um romance já foi escrito sobre elas e se tornou best-seller (trata-se da sátira Five Point Someone,título que livremente poderia ser traduzido como O Aluno Medíocre). Os homens são a esmagadora maioria nos IITs, mas as moças também estão lá. No IIT de Roorkee são 343 entre 3.266 rapazes. Para elas, além dos possíveis ganhos em dinheiro, a educação significa um novo tipo de controle sobre a própria vida. Diz a estudante de engenharia Gitanjali Prasad: "Eu certamente quero me casar, mas também quero dedicar tempo à minha carreira".
O casamento nos moldes tradicionais continua sendo uma instituição não apenas central como muito bem-aceita na vida indiana, mesmo entre os jovens urbanos. Por moldes tradicionais entenda-se coisas como o casamento arranjado – freqüentemente com a ajuda de vistosos anúncios nos cadernos matrimoniais, que são a parte mais importante dos jornais de domingo – e a mudança dos noivos para a casa dos pais dele depois da celebração. Mas a tolerância para "arranjos alternativos" cresceu bastante, e a vida profissional das mulheres é um fator importante nisso. A idéia do divórcio é sempre recebida com um balanço pesaroso de cabeça, mas ela já não é anátema como dez ou quinze anos atrás. Os carinhos públicos de casais não são algo fácil de ver na Índia. Nos filmes de Bollywood, só agora os primeiros beijos estão aparecendo – "muito desajeitados e precisando de treino", como diz a escritora Shobha Dé. Nos clubes noturnos de uma cidade agitada como Mumbai é a mesma coisa: muita dança sensual embalada por canções estrangeiras ou indianas, muita carne exposta por saias e miniblusas, mas também a preservação quase universal dos limites, digamos, do bom-tom. Informalmente, contudo, os jovens reconhecem que o sexo pré-marital é bem mais comum do que se possa julgar.
OS POBRES NA CIDADE Uma espécie de lavanderia coletiva a céu aberto em Mumbai (à esq.) e dois garotos mendigando numa avenida de Hyderabad (à dir.): em nenhum lugar público da Índia é possível desviar os olhos da miséria |
A cultura do hedonismo e do consumo está dando os primeiros passos na Índia. Os cirurgiões plásticos são bastante requisitados, mas com discrição; o Botox foi liberado para uso cosmético apenas em meados de maio. À mesa, o vinho é um hábito que está sendo rapidamente adquirido pelas classes emergentes. "O primeiro clube de degustação surgiu em Mumbai em 1992, e agora já há mais de 5.000 pelo país", diz o empresário S.G. Chougule, que dedica seu tempo livre à pesquisa de cepas de uva que possam ser plantadas na Índia (ele é dono de uma vinícola, cujos produtos levam a marca Indage). Um fenômeno discutido por todos os observadores da vida social é o surgimento da "página 3" nos grandes jornais. Pessoas da página 3 são celebridades: estrelas de cinema, obviamente, já que Bollywood é a principal indústria de entretenimento da Índia, muito à frente da televisão, mas também jovens estilistas como Manish Arora e escritoras como Shobha Dé. As grifes estrangeiras marcam presença no país e muitos jovens que podem comprá-las as estão usando como emblemas de identidade. Mas não há sinal de que o indiano, até mesmo o mais afluente, venha a ter com as grifes uma relação remotamente parecida com a que têm os japoneses – entre outras coisas, porque roupas tradicionais como o sari têm presença garantida no cotidiano tanto quanto nas celebrações.
Ravendran/AFP |
AP |
VOZES DA POLÍTICA O premiê Manmohan Singh com Bush (no topo, à esq.), os líderes do partido nacionalista BJP, da oposição (acima), e uma passeata estudantil (abaixo): democracia à indiana |
AP |
Durante o último Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, a Índia foi uma vedete com seus números de crescimento. Outdoors brilhavam com a frase "Índia inacreditável". Mas o slogan ganha significado irônico assim que se pisa no país. A precariedade da infra-estrutura indiana é um tapa na cara de qualquer visitante, até mesmo o brasileiro, familiarizado com problemas de trânsito e de abastecimento d'água, com favelas e lixões. Os aeroportos são barracões depauperados. Os blecautes de energia são rotina. Qualquer incursão nas estradas é uma aventura que oscila entre o cômico e o assustador. Cada avanço tem de ser negociado com veículos de todo tipo, inclusive carroças e tratores que surgem do mato sem aviso prévio. A frota de automóveis da Índia se moderniza aos poucos, mas ônibus e caminhões são em geral decrépitos; seus pára-choques trazem a inscrição "buzine, por favor". As estradas são estreitas e cheias de buracos. Dos 2,5 milhões de quilômetros da malha rodoviária nacional, menos de 10% são modernos e bem conservados. Quanto às metrópoles – bem, como já dito, o Brasil não é um caso de urbanização feliz, mas a Índia é ainda pior.
Cidades como Bangalore ou Mumbai ameaçam estourar. Dotada de um clima ameno, Bangalore foi uma das localidades preferidas dos colonizadores britânicos, que nela criaram parques e comodidades. Mais tarde ela se tornou "o paraíso dos aposentados". Finalmente, nos anos 90, um novo apelido entrou em voga: "Vale do Silício indiano", referência às empresas de tecnologia que se instalaram ali. Mas o sucesso econômico não foi acompanhado por esforços de organização. A cidade hoje padece de imensos congestionamentos, esgotos a céu aberto e favelas cada vez mais apinhadas. Outro exemplo impressionante é o de Mumbai. Trata-se da cidade mais populosa da Ásia, com 14 milhões de habitantes. Toda essa gente se espreme numa faixa estreita de terra, na verdade uma ilha. Novos subúrbios começaram a despontar recentemente, mas eles não bastam para desafogar a metrópole. Exércitos de mendigos se movem pelas ruas. Outras manchas de pobreza marcam a paisagem: bairros labirínticos onde vivem muçulmanos; cortiços ligados a tecelagens falidas; favelas "modernas", com casebres de madeira. Centro financeiro e cultural, Mumbai também tem muitos ricos. Mas até os bairros nobres transpiram decadência. A culpa é de uma lei dos anos 40, que torna quase impossível promover um despejo. Projetos para derrubar a lei vêm à baila de tempos em tempos e são abandonados assim que os proponentes se dão conta de seu possível custo político. Sem poder dispor de seus imóveis, os proprietários deixaram de conservá-los e eles foram se deteriorando, batidos pelas monções. Se a Baía de Guanabara lembra uma boca banguela, como disse o antropólogo Claude Lévi-Strauss, a baía central de Mumbai é uma boca com dentes podres.
Paulo Vitale |
CELEBRAÇÃO Todos os dias, ao crepúsculo, centenas de peregrinos se reúnem para rezar às margens do Rio Ganges em Haridwar, uma das cidades sagradas do hinduísmo |
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Especial
Paulo Vitale |
Quando a Índia se tornou independente do Império Britânico, ela herdou instituições legais e políticas de cunho democrático. Sua primeira geração de líderes teve a sabedoria de construir sobre esses alicerces, em vez de rejeitá-los. Exceto por um breve "período de emergência", no fim da década de 70, o regime democrático indiano se mantém intacto há sessenta anos. Trata-se de uma vantagem inegável na luta pela modernidade. Num país autoritário como a China, demandas futuras por maior liberdade podem resultar em caos. A democracia indiana é uma promessa de estabilidade a longo prazo. No dia-a-dia, contudo, não são poucos seus problemas. Como a corrupção, por exemplo. Segundo a ONG Transparência Internacional, essa é uma praga ainda mais indiana do que brasileira. Lá como aqui, o financiamento de campanhas é um processo vergonhoso. "O aspecto mais repugnante da corrupção na Índia não é a sua extensão, mas o fato de ela estar sendo aceita como algo inevitável", afirma o economista Bimal Jalan, que foi presidente do banco central indiano entre 1997 e 2003. Também não são poucas as pressões depositadas sobre a esfera política. Elas decorrem do ancestral sistema de castas, dos conflitos ideológicos e religiosos e de uma estonteante diversidade regional e cultural (sobre esta última, basta dizer que há dezoito línguas oficiais na Índia e cerca de 2.000 dialetos).
Um chiste famoso, atribuído à ex-primeira-ministra Indira Gandhi, diz que a Índia não é um cadinho onde as coisas se fundem, e sim um prato de salada onde elas se misturam. Em termos mais abstratos, isso significa que a Índia abraça a filosofia do pluralismo. Há quem diga, no entanto, que o país tem uma essência, e que essa essência é hindu. O principal defensor dessa idéia é o BJP, que dirigiu a Índia de 1999 a 2004 e hoje lidera a oposição. "Não somos sectários. Não queremos criar divisões. Nossa política pode se resumir numa frase, a nação antes de tudo", diz o porta-voz do partido, Prakash Javadekar. Quando estava no governo, porém, o BJP tomou medidas como encomendar uma revisão dos livros de história adotados nas escolas, tornando-os doutrinários. Além disso, há bons indícios de que suas lideranças podem alimentar conflitos em regiões do país sob sua influência. Quatro anos atrás, mais de 2.000 pessoas da minoria muçulmana foram linchadas no estado de Gujarat. No mês passado, duas noites de terror reavivaram a memória desse massacre. Seis muçulmanos foram mortos depois de protestos contra a demolição de uma mesquita na cidade de Ahmedabad. Um deles foi queimado dentro de seu carro. O Exército interveio antes que houvesse uma escalada de violência. As tropas, no entanto, foram acionadas pelo governo central, pois corria a suspeita de que a polícia local fechava os ouvidos aos pedidos de socorro. Hoje, como em 2002, Gujarat é governado pelo BJP.
Paulo Vitale |
NA PASSARELADesfile de moda em Nova Délhi: o mercado indiano está na mira das grifes internacionais |
O sistema de castas da religião hindu representa outro enorme desafio para a Índia. Segundo os textos sagrados, uma entidade cósmica, Purusha, sacrificou seu corpo para criar a humanidade. De sua boca surgiram os brâmanes, a casta sacerdotal. De seus braços vieram os guerreiros e os proprietários de terra, batizados de xátrias. Das pernas saíram os comerciantes, ou vaixás. Finalmente, dos pés do gigante brotou a casta dos sudras, os trabalhadores braçais. A humanidade terminava aí; para além de suas fronteiras ficavam os "intocáveis", submetidos a toda espécie de jugo e humilhação. Por mais que se fale em secularização, esse sistema ainda permeia a vida social da Índia. Desde o berço as pessoas desenvolvem sensores para identificar a posição de um indivíduo no painel das castas com base em seu nome ou em seu tom de pele. Na verdade, a classificação é ainda mais sutil, pois há centenas de subcastas associadas às ocupações e à origem geográfica. O estrangeiro a quem dizem que as castas são coisa do passado (e essa afirmação é feita com alguma freqüência) precisa apenas folhear os anúncios matrimoniais dos jornais de domingo para certificar-se do contrário. Cada anúncio lista os atributos do pretendente e suas exigências. É possível dividir os classificados entre aqueles que requerem, ou não, um noivo de casta específica.
Em 1950, a discriminação com base nas castas ganhou limites legais. A Constituição indiana promulgada naquele ano aboliu a intocabilidade e inaugurou uma nova era: a da ação afirmativa. Nas décadas que se seguiram, vários programas foram criados para promover a ascensão social dos antigos intocáveis (que se rebatizaram como dalits, ou "oprimidos") e também dos integrantes de subcastas mais pobres. É um assunto que não pára de ferver. Neste exato momento, a Índia está em agitação por causa dele. Uma nova lei acaba de aumentar as cotas destinadas a dalits e congêneres nas universidades e no serviço público. A reserva, que era de 22,5% das vagas, pulou para 49% delas. Nem todos os que se opõem à medida – entre eles estudantes que no mês passado chegaram a ter confrontos violentos com a polícia nas ruas de Nova Délhi – o fazem por preconceito. Eles têm argumentos respeitáveis, como o de que um sistema de cotas tão ampliado põe em perigo a meritocracia nas universidades. Uma das acusações mais repetidas durante o período em que se discutiu a nova lei foi a de que seu objetivo era simplesmente conquistar o voto dalit. Em outras palavras, ela seria uma medida populista.
Como observam alguns – entre eles o Prêmio Nobel de Economia Amartya Sen –, ação afirmativa com base em castas não beneficia necessariamente os mais pobres. Nos últimos cinqüenta anos, por exemplo, muitos dalits enriqueceram, o que significa que seus filhos não precisam de mais benefícios. Na verdade, mesmo tomados em conjunto, os antigos intocáveis já não representam o degrau mais baixo da pirâmide social. "Pode-se dizer que a situação dos dalits é hoje um pouco melhor que a dos muçulmanos", afirma Mohammad Hamid Ansari, diretor da Comissão de Minorias da Índia. Num país onde 300 milhões de pessoas vivem com menos de 1 dólar por dia, a miséria não faz mesmo muitas distinções. Nesse panorama, medidas que poderiam fazer a diferença são em áreas como alfabetização e saúde pública. Mas elas não ganham corpo. Quase metade da população indiana continua analfabeta. O número de aidéticos é o segundo maior do mundo.
Se o Estado indiano não consegue arquitetar grandes medidas sociais, apesar de toda a retórica sobre ajuda aos pobres, a boa notícia é que no plano econômico um consenso está firmado. Os dois partidos de expressão nacional, o Congresso e o BJP, concordam sobre o que fazer para manter as boas taxas de crescimento. A conjuntura política pode acelerar ou brecar reformas, mas é improvável que mude seus rumos. O atual primeiro-ministro, Manmohan Singh, foi artífice do primeiro grande choque de liberalização da economia indiana, em 1991. Esperava-se que ele fosse ousado ao assumir seu cargo atual, mas não é isso o que vem ocorrendo. Um dos grandes debates do momento na Índia diz respeito ao setor de varejo. Um visitante que percorra o país cedo ou tarde se dá conta da ausência de supermercados. Multinacionais como Wal-Mart e Carrefour estão ávidas para entrar na Índia, e gigantes locais como o grupo Reliance têm planos para o setor. Mas o possível impacto da abertura sobre os milhões de pequenos negócios familiares que abastecem o indiano com os produtos do dia-a-dia refreia a mudança. "Vamos promover transformações, mas ainda não sabemos qual modelo aplicar", diz o ministro do Comércio e Indústria, Kamal Nath. Sua fala cautelosa reflete as negociações entre o partido do Congresso e agremiações de esquerda que o apóiam. Significa demora, mas não que as amarras deixarão de ser abolidas. E o fim das amarras tem mostrado ser suficiente para levar adiante um povo que demonstra ser obstinado e confiante.
Paulo Vitale |
FUNK À INDIANAA cena noturna de Mumbai é agitada. Há de tudo entre os jovens, do consumo de ecstasy ao sexo casual. Só os carinhos em público são raros |
A Índia tem sido descrita como um formidável Tigre Asiático. Pergunte a um indiano, porém, e ele vai preferir a metáfora do elefante. Pode haver um pouco de superstição aí. Ganesh, a adorada divindade hinduísta, tem a cabeça daquele animal. Ele é o deus da prosperidade e do sucesso. Mas outros significados estão em jogo. Primeiro, a idéia de que tanto quanto a China, simbolizada pelo dragão, a Índia é um ser à parte entre os países emergentes. Em segundo lugar, a percepção de que os desafios ainda são imensos num país tão grande e cheio de diversidade. "O elefante é corpulento", diz Gurcharan Das, ex-presidente da Procter&Gamble na Índia e hoje um influente comentarista de assuntos nacionais. "Ele tem força e resistência, mas não tem agilidade. O mesmo se aplica a nós. Estamos no caminho certo, mas não vamos eliminar nossos problemas num salto." É realmente adequado ver a Índia nesses termos. Por onde quer que se ande no país, a confiança e o impulso para a frente são palpáveis – assim como o peso que se precisa arrastar.
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