segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Saúde Pública: um diagnóstico da saúde na África

Mckinsey Quartely
via http://www.diagnosticoweb.com.br/

Atendimento em comunidade remota da África: falta de médicos e infraestrutura ainda são um desafio para o continente mais pobre do planeta (Foto: Shutterstock)

Nas décadas recentes, a atenção global ao pungente estado da saúde na África subsaariana aumentou dramaticamente. O financiamento ao combate aos principais problemas de saúde no continente alcançou níveis sem precedentes, e nítidas melhorias têm sido feitas. Em Zanzibar, na Tanzânia, por exemplo, as mortes por malária diminuíram substancialmente. E em Uganda a mortalidade materna caiu mais da metade. 

Apesar desses progressos, a saúde da vasta maioria das pessoas na África subsaariana continua em perigo. De 1990 a 2005, a expectativa de vida deslizou em mais de dois anos, caindo para 47,1 anos. Além disso, milhões de africanos continuam sofrendo de doenças que podem ser prevenidas ou curadas de uma forma relativamente fácil.
 
À medida que  os sistemas de saúde da região lutam para atingir os padrões básicos de atenção, muitos especialistas passaram a acreditar que barreiras existentes no sistema impedem maiores progressos. Uma abordagem ampla é necessária para superar esses obstáculos. Mas como podem acontecer vastas mudanças em países que ainda lutam para oferecer cuidados básicos? Para resolver esse problema, a Touch Foundation, uma ONG atuante na Tanzânia, e a McKinsey recentemente conduziram uma ampla investigação no sistema de saúde na região do Lago Victória, no nordeste do país. Essa área foi escolhida porque é pequena o suficiente para ser estudada em detalhes e grande o bastante para servir como uma representação geográfica adequada para a Tanzânia como um todo e, potencialmente, para toda a região subsaariana.
   
Essas iniciativas vão exigir novos investimentos, e nós não subestimamos as dificuldades em encontrar esses recursos necessários. Mas como essas iniciativas estão focadas o seu impacto será desproporcional ao seu custo. A abordagem diagnóstica que usamos na região do lago forneceu uma maneira de superar o debate sobre se os países da África subsaariana devem possuir programas verticalizados destinados a buscar resultados em doenças específicas ou esforços horizontalizados para fortalecer os sistemas de saúde. Qualquer sistema de saúde, na África subsaariana ou em qualquer outra parte, pode se adaptar a essa abordagem.

Os Desafios – A saúde precária de tantas pessoas na África subsaariana é amplamente conhecida há anos. Ao longo da última década, contudo, a crise na assistência médica da África recebeu uma renovada atenção por causa de fatores como a disseminação do  HIV/AIDS e uma maior compreensão da relação entre saúde e desenvolvimento econômico.

Esses esforços produziram resultados importantes. Em um número crescente de nações africanas, a catastrófica taxa de novas infecções de HIV em adultos parece estar em queda: de acordo com a UNAIDS (o programa da ONU para Joint United HIV/AIDS), o número de novas infecções na África subsaariana declinou em 25% aproximadamente em 2008. Similarmente, as taxas de tuberculose estão lentamente caindo em toda a região. A incidência de malária e a mortalidade por causa da doença estão declinando não apenas em Zanzibar – costa leste da Tanzânia –, mas também em muitas outras partes da África. 
  
Entretanto, a região continua a enfrentar profundos desafios na saúde. A Tanzânia, por exemplo, tem feito progressos contra a mortalidade infantil, ainda que uma em cada nove crianças tanzanianas morra antes de completar cinco anos. E a taxa de mortalidade materna do país persiste alta, a despeito de três quartos dessas mortes serem evitáveis. O país é a 92ª economia do mundo, a 15ª da África – em um ranking formado por 60 países – e possui PIB estimado em US$ 28 bilhões, equivalente ao do estado do Pará.

Abordagem diagnóstica  Nossa investigação teve como objetivo identificar as principais barreiras que frustram a prestação de serviços preventivos de saúde, serviços de diagnóstico e tratamentos eficazes na zona do lago. Para definir o esforço, construímos quatro percursos clínicos diferentes, que descrevem a viagem que os pacientes fazem através do sistema de saúde. Com cada caminho focado em um problema de saúde específico – malária, saúde infantil, saúde materna e trauma –, juntos eles forneceram insights sobre como o sistema funciona na sua totalidade.

Esta abordagem inovadora oferece vários benefícios. Ela disponibiliza uma janela para entender como os pacientes realmente experimentam o sistema de saúde, bem como uma visão abrangente de como o atendimento é prestado na ponta. Além disso, ao permitir comparações entre a prestação de cuidados reais e as diretrizes internacionais de melhores práticas, ilumina as lacunas entre elas. Mais importante, expõe as barreiras que permitem que essas lacunas persistam.


Nairobi, capital DO do Quênia: governos locais vêm descobrindo que o desenvolvimento econômico da África subsaariana está vinculado ao avanços na saúde pública da região (Foto: Shutterstock)

AS BARREIRAS INICIAIS A UMA ASSISTÊNCIA EFETIVA

Três problemas que se reforçam mutuamente compõem as barreiras mais importantes em todos os quatro caminhos: o acesso a cuidados de saúde primários é, no máximo, apenas um terço do que a zona lago requer; a força de trabalho é apenas uma fração do tamanho necessário; e várias deficiências operacionais impedem o bom funcionamento do sistema.

Acesso insuficiente  Na zona do lago, as maiores lacunas no atendimento ocorrem em cuidados primários. Cerca de dois terços deles são oferecidos pelo sistema de saúde pública, e o restante, por organizações sem fins lucrativos, empresas privadas ou pelo setor informal (curandeiros tradicionais ou trabalhadores de saúde clandestinos, por exemplo). Cuidados primários oferecidos pelo setor público são quase sempre gratuitos, mas organizações privadas e sem fins lucrativos geralmente cobram taxas dos usuários. Além disso, os pacientes, muitas vezes, optam por pagar do próprio bolso por serviços prestados no setor informal. Apesar dos serviços que todos esses grupos oferecem, a atenção primária na zona lago continua lamentavelmente insuficiente.

Dois tipos de instalações prestam serviços de cuidados primários lá: dispensários e centros de saúde. Dispensários são pequenas clínicas que oferecem consultas básicas, serviços de diagnóstico, tratamento para condições de rotina e encaminhamentos para tratamentos mais avançados. Os centros de saúde fornecem esses serviços, bem como outros mais avançados. A falta de ambos os tipos de instalações torna difícil para as pessoas, especialmente as mães e as crianças, ter acesso a cuidados de saúde primários convenientemente. Além disso, a eficácia das instalações está comprometida tanto pela escassez significativa de suprimentos médicos e de pessoal, quanto pela frequente falta de energia elétrica e água potável. Dentro de todos os quatro caminhos clínicos estudados, verificou-se que as maiores lacunas na prestação de cuidados ocorrem nos dispensários, com os centros de saúde se saindo um pouco melhor.

Uma aguda escassez de profissionais de saúde  Os profissionais de saúde estão em falta em toda a África sub-saariana, especialmente na Tanzânia. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que o país deveria ter uma força de trabalho médica de cerca de 92 mil profissionais (a população atual do país é de 46 milhões de habitantes). O governo aspira crescer cerca de 52%, até 2019, chegando a aproximadamente 140.500 profissionais. Mas, no momento, o país tem apenas cerca de 25.400 trabalhadores em assistência médica. Uma das razões para a escassez é o número insuficiente de programas de treinamento: a Tanzânia tem menos de 100 instituições, que, juntas, formam menos de 4 mil alunos por ano. Até 30% dos trabalhadores de saúde do país deixam o sistema dentro de um ano após o treino. Aqueles que se formam, muitas vezes, acabam desistindo da carreira, como resultado dos baixos salários (com pagamentos atrasados, muitas vezes por mais de um ano), da localização remota e da má qualidade da maioria das instalações de cuidados primários, além da falta de acesso a uma formação adicional, entre outras razões. 

As unidades de saúde, assim, muitas vezes não têm trabalhadores com as competências para cumprir os padrões básicos de atendimento. De acordo com as diretrizes do governo, dispensários deverão ser compostos por oito profissionais de saúde, mas na prática a maioria tem apenas um ou dois. Os centros de saúde devem ter cerca de 30 funcionários, mas geralmente têm menos da metade disso. Muitas vezes, os trabalhadores de saúde nestas instalações não têm formação ou acesso à educação médica continuada apropriada. Além disso, a produtividade é baixa: em média, os funcionários gastam apenas cerca de 40% do seu tempo de trabalho na assistência ao paciente.

DEFICIÊNCIAS DO SISTEMA

Além desses problemas, três debilidades evitam que o sistema de saúde da região do lago alcance melhores resultados.

Falta de dinheiro – A Comissão de Microeconomia e Saúde da OMS estima que a maioria das nações em desenvolvimento precise gastar de US$ 30 a US$ 40 por pessoa por ano para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) das Nações Unidas. O gasto per capita anual da Tanzânia é apenas cerca de US$ 20.

Práticas de gestão frágeis – Poucos dispensários, centros de saúde e hospitais usam ferramentas de gestão de desempenho eficazes. Muitos incentivos para os trabalhadores de saúde estão desalinhados – o trabalho é recompensado pelas tarefas executadas e não pelos resultados do paciente, por exemplo. Além disso, a zona do lago carece de sistemas de informação para apoiar a prestação de atendimento médico. Uma razão pela qual a escassez de oferta é comum em dispensários e centros de saúde é que o sistema não tem uma maneira eficiente de controlar os níveis de estoque. A cadeia de fornecimento do sistema também sofre de supervisão gerencial fraca e processos pobres de aquisição e distribuição.

Mentalidades e comportamentos – Entrevistas com membros da equipe (especialmente aqueles que trabalham em cuidados de saúde primários) sugerem que muitos estão com moral baixa pelos mesmos fatores que fazem com que os seus colegas deixem a assistência médica. Pacientes detectam essa apatia. Muitos veem os profissionais de saúde desmotivados, irresponsáveis e não qualificados. 

Estes problemas se reforçam mutuamente: baixo financiamento, por exemplo, se traduz em baixos salários e níveis de abastecimento precários, que acabam impactando na baixa autoestima das equipes, tendo como consequência direta a baixa produtividade e o aumento das taxas de retenção. Se os cuidados de saúde devem ser entregues de forma eficaz na zona do lago, este círculo vicioso deve ser transformado em um virtuoso. Fornecimentos e serviços melhores e mais acessíveis poderiam atrair mais pacientes, o que poderia levar a um aumento das receitas e salários e, por fim, a maior motivação, produtividade e menor retenção. 


Terceiro setor: ajuda de ONGs é apenas uma parte da solução para um sistema de saúde ainda precário e com baixa resolutividade (Foto: Shutterstock)

MELHORANDO O ACESSO À ATENÇÃO BÁSICA

Estender o alcance da atenção primária e melhorar o seu desempenho requer uma ação em várias frentes simultaneamente, incluindo novos modelos de atendimento para aumentar o acesso, um papel maior para as organizações sem fins lucrativos e privadas na prestação de serviços, bem como a introdução de incentivos de desempenho para melhorá-lo.

Outros países em desenvolvimento utilizam três modelos de atendimento inovadores para fornecer cuidados primários de baixo custo. Agentes comunitários de saúde têm apenas formação limitada, mas realizam atividades de promoção da saúde e servem como elo para os colegas melhor treinados. Como quase todas as aldeias podem ter seu próprio agente comunitário de saúde, as noções básicas de prestação de assistência médica estão disponíveis para todos. Assistência de saúde móvel é uma forma de estender o alcance de dispensários e centros de saúde. Os profissionais de saúde se deslocam regularmente para aldeias vizinhas não atendidas (um dia por semana, por exemplo), levando suprimentos médicos básicos e ferramentas de comunicação. Call centers operados por enfermeiros (com a supervisão de médicos) podem apoiar tanto a comunidade quanto as equipes móveis de profissionais de saúde, que usam telefones celulares ou outras tecnologias de comunicação para se consultar com a equipe.

Para melhorar o desempenho nos dispensários do setor público e centros de saúde, o sistema de saúde pode oferecer incentivos à sua força de trabalho. Atualmente, estas instalações são formadas por empregados assalariados pouco motivados a melhorar a prestação de atendimento. Muitos países desenvolvidos resolveram problema semelhante baseando o reembolso em uma combinação de captação e algum tipo de taxa por serviço ou modelo de remuneração por desempenho para equilibrar a necessidade de aumentar o serviço com as limitações do orçamento. A Tanzânia começou a se mover nessa direção, por exemplo, e agora oferece pagamento de bônus por desempenho aos trabalhadores de saúde que atendam a determinados objetivos da saúde materno-infantil.

A Tanzânia poderia ir mais longe. Muitos países incentivam a apropriação de algumas formas de prestação de assistência. Mesmo em sistemas de financiamento público, como o Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido, por exemplo, a maioria dos médicos de família é dona de seus consultórios. A Tanzânia poderia usar abordagens semelhantes.

Uma inovação que tem sido utilizada com sucesso em outros lugares é incentivar as organizações sem fins lucrativos e privadas à prestação de cuidados mais primários. Em alguns países em desenvolvimento, dispensários e centros de saúde que são operados pelo proprietário ou geridos através de um modelo sócio-franchising complementam as ofertas de serviços oferecidas pelo setor público. No Quênia, por exemplo, mais de 60 dispensários franqueados prestam atendimento de saúde a cerca de 350 mil pacientes por ano. O custo dessas instalações está coberto não só pelos gastos do governo e as contribuições dos doadores, mas também pelos pagamentos dos pacientes. Que os tanzanianos paguem por alguns serviços de saúde não é uma ideia nova, pois as estimativas oficiais sugerem que, apenas em 2006, eles gastaram entre US$ 208 milhões e US$ 265 milhões do próprio bolso em atendimentos de saúde.

Para funcionar corretamente, os incentivos devem ser apoiados por dados operacionais detalhados sobre o número de pacientes atendidos e as condições de tratamento. Uma rotina de recolhimento desses dados é, portanto, essencial. O uso rapidamente crescente de telefones celulares torna isso possível, mesmo em ambientes pobres em recursos.

AUMENTANDO A FORÇA DE TRABALHO

A Iniciativa Twiga – que em idioma nativo significa girafa –  pretende dobrar a capacidade da Tanzânia em treinar os profissionais de saúde (dos atuais 3.850 para 7.500 por ano), em um dos mais importantes programas do governo na área. Embora este plano possa aumentar a força de trabalho do sistema de saúde dos atuais 25 mil para 48 mil em 2019, o quadro de pessoal ainda vai ser muito baixo. Devem ser consideradas quatro medidas adicionais: novos tipos de trabalhadores com necessidade de formação mais curta, bem como uma melhor retenção de pessoal, recursos de treinamento e produtividade da equipe. A maioria dos trabalhadores de saúde na Tanzânia recebe pelo menos dois anos de treinamento. Em alguns casos, três. No entanto, o tempo médio de treinamento pode cair consideravelmente se forem introduzidos dois novos tipos de profissionais de saúde: um daria atenção primária básica em dispensários, o outro, às formas de sensibilização da comunidade descritas acima. A experiência de outros países em desenvolvimento sugere que esses trabalhadores poderiam ser educados em cerca de um ano. Desta forma, a Tanzânia poderia educar mais de 26.500 trabalhadores no prazo de dez anos.

Mas esses novos trabalhadores da saúde não vão reduzir a necessidade de funcionários dispostos a trabalhar em áreas rurais. Para ajudar a atrair trabalhadores de saúde (especialmente médicos e enfermeiros) para o campo e incentivá-los a permanecer lá, a Tanzânia poderia oferecer empréstimos estudantis e pacotes de incentivos, bem como um maior compromisso dos distritos locais para manter a qualidade dos serviços de saúde. Além disso, o país poderia introduzir programas de orientação ativa e e-learning para melhorar a formação contínua.

Com isso, os hospitais da Tanzânia podem desempenhar um papel crucial na expansão de programas de treinamento de força de trabalho, criando e fornecendo recursos de e-learning e desenvolvendo novos programas de orientação. Essas instituições devem reforçar a sua liderança clínica, de gestão de desempenho e capacidades de gestão de talentos e formar redes para estabelecer acordos de referência mais eficazes de prestadores de atendimento primário e entre hospitais distritais, regionais e terciários. Essas redes também poderiam oferecer educação médica continuada nas áreas de captação e aumentar a colaboração entre os estabelecimentos. Hospitais poderiam fazer parcerias com instituições de ensino internacionais para ter acesso também a informações sobre os recentes avanços na assistência médica.

A Tanzânia não pode, no entanto, resolver a crise da força de trabalho sem melhorar a produtividade de seus trabalhadores, atualmente em 40% no nível de melhores práticas, para cerca de 55% (uma meta razoável para os padrões internacionais). Hospitais podem liderar o caminho através da realização de programas de melhoria de desempenho para aumentar a sua própria produtividade e expor os formandos a métodos mais eficientes, o que teria um impacto direto até mesmo na atenção básica. 
Um programa padronizado de melhoria de desempenho voltado especificamente para dispensários e centros de saúde poderia também ter um impacto significativo se os membros da equipe tivessem incentivos adequados e fossem abertos à mudança.


Mortalidade infantil em queda: apesar dos progressos, uma em cada nove crianças morre antes de completar cinco anos na Tanzânia (Foto: Nelik / Shutterstock.com)

CRIANDO UM SISTEMA DE SAÚDE SUSTENTÁVEL
Três mudanças fundamentais devem ocorrer para o sistema de saúde melhorar o atendimento de uma forma real e substancial. Nada vai ser fácil de fazer, mas todas são necessárias.

Aumentando o financiamento – Embora o sistema de saúde deva receber mais financiamento, as condições econômicas atuais, tanto no mundo quanto na Tanzânia, tornam aumentos significativos irrealistas. Propomos, portanto, novos modelos de cuidados de saúde primários e novas formas de ampliar a força de trabalho. Essas mudanças poderiam aumentar a cobertura do sistema de saúde na zona do lago significativamente, de forma eficiente e econômica. Hoje em dia, o sistema atinge apenas cerca de um terço da população da região. Sem mudanças na forma como o sistema funciona, o financiamento pode ter que triplicar, portanto, para prestar atendimento médico adequado a toda a população. Por outro lado, as nossas recomendações dobrariam a cobertura na zona do lago com um aumento de 35% no financiamento. A cobertura total seria possível com um aumento de 70%.

Mesmo estas abordagens serão um desafio para serem implementadas na zona lago no curto prazo. Nos últimos anos, no entanto, o PIB da Tanzânia aumentou o dobro da taxa de crescimento da população (6% contra 3%). Até mesmo em 2008, o país teve um aumento do PIB sólido. Graças a esta tendência, o gasto per capita da Tanzânia em cuidados de saúde deve aumentar em 70% em 18 anos. Além disso, se o crescimento do PIB continuar forte, o governo pode ser capaz de aumentar a parcela do seu orçamento dedicada aos cuidados de saúde ao nível em que se comprometeu na Declaração de Abuja, que a Tanzânia e outros 43 países africanos assinaram em 2001, fixando os gastos com saúde pública em 15% de seus orçamentos.

Se a dotação orçamentária subir de seu nível atual (cerca de 11%) para os 15% prometidos, o financiamento público do sistema aumentará em quase 36%, reduzindo para 13 anos o tempo necessário para alcançar um aumento de 70%. Alguns ganhos com o crescimento do PIB seriam, no entanto, anulados pela inflação da assistência médica. No entanto, estima-se que, em 2019, o gasto per capita com saúde da Tanzânia pode aumentar em 85%. Na verdade, mesmo se o crescimento do PIB for menor do que tem sido anteriormente, a Tanzânia poderia aumentar o financiamento dos cuidados de saúde consideravelmente em 2019. Estes cálculos revelam que a percentagem de financiamento da assistência médica, com a contribuição do setor privado, permanece estável. Para que isso aconteça, tanto os gastos dos bolsos dos tanzanianos quanto a ajuda externa para o desenvolvimento teriam que ir aumentando em linha com o crescimento do PIB. Dada a atual recessão, manter esse crescimento no curto prazo será outro desafio. 

No entanto, os doadores podem valorizar a chance de atuar como catalisadores para a mudança necessária, especialmente se o seu dinheiro servir para estimular o sistema durante uma década, enquanto o país constrói um modelo de financiamento interno sustentável. Se os tanzanianos podem pagar valores mais elevados do próprio bolso, é incerto, mas ao oferecer modelos inovadores de assistência médica com uma melhor prestação de serviços, os fornecedores privados ou sem fins lucrativos podem capturar uma fatia maior dos pagamentos que atualmente vão para o setor informal.

Melhor capacidade de gestão – A implementação das nossas ideias para melhorar o atendimento primário e a capacidade da força de trabalho vai exigir supervisão significativa do Ministério da Saúde da Tanzânia e das autoridades locais. Assim, eles terão de reforçar as suas capacidades de liderança, especialmente a sua condição de monitorar a entrega de iniciativas ambiciosas e fornecer gestão eficaz para o sistema. A tecnologia da informação é importante nesse processo. Os funcionários podem, por exemplo, aproveitar o poder de telefones móveis para coletar dados e gerenciar as operações em instalações individuais. A TI também poderia melhorar significativamente a cadeia de fornecimento do sistema para garantir que a quantidade adequada de medicamentos e equipamentos está disponível quando necessária. 

Organizações sem fins lucrativos e religiosas da Tanzânia reportam que têm muito menos problemas de falta de estoque e que os seus custos com a cadeia de suprimentos são mais reduzidos do que os das lojas de departamento médicas operadas pelo governo. Seus resultados sugerem que a Tanzânia poderia fortalecer o desempenho do departamento de saúde, abrir o fornecimento de suprimentos à competição privada, ou ambos.

A coleta de dados rotineira permitirá que as autoridades monitorem a demanda por serviços e a implantação e produtividade dos funcionários em cada unidade. Uma vez agregados, os dados podem ser usados para examinar as tendências de saúde, identificar as questões emergentes e avaliar o desempenho de todo o sistema de saúde. Prestadores de fora do sistema público poderiam desempenhar um papel importante na ampliação do seu alcance, mas o ministério tem que garantir que eles entreguem um atendimento de qualidade a um preço razoável.
 
Embora seja necessária uma maior fiscalização dos prestadores sem fins lucrativos e privados, a regulamentação deve ajudá-los a operar de forma sustentável em qualquer lugar, não apenas em áreas de alta renda.

Melhores mentalidades e comportamentos – Gratificações por desempenho e outros programas de incentivo poderiam motivar os profissionais de saúde a oferecer atendimento de alta qualidade com eficiência. A entrega aperfeiçoada de suprimentos reduziria a frustração. Melhores capacidades de gestão ajudariam a garantir que os trabalhadores sejam pagos a tempo. Para melhorar ainda mais as atitudes dos profissionais de saúde, o sistema deve lhes oferecer formação em gestão e outras oportunidades de desenvolvimento de competências e um ambiente de trabalho mais favorável. E deve assegurar que os seus líderes clínicos sejam modelos eficazes. A mudança de mentalidade entre os pacientes também é necessária para que eles procurem tratamentos necessários mais prontamente. A presença de agentes comunitários de saúde em cada aldeia pode ajudar a mudar mentalidades, fazendo  os pacientes verem que o sistema de saúde está atendendo às suas necessidades imediatas.

Nossa experiência em outros países subsaarianos sugere que muitos deles enfrentam problemas semelhantes. Uma abordagem investigativa semelhante à descrita aqui pode permitir que os países identifiquem as barreiras específicas que os impedem de prestar cuidados de saúde de forma eficaz e as iniciativas que têm o maior impacto na superação das barreiras. 

Esses países podem fortalecer seus sistemas de saúde, fazer progressos significativos na melhoria da prestação de cuidados e, mais importante, salvar muitas vidas.

*Este artigo é uma reprodução. Mckinsey Quartely | www.mckinseyquartely.com. Publicado com exclusividade na América Latina pela revista Diagnóstico. Todos os direitos reservados. Por Lowell Bryan, Michael Conway, Tineke Keesmaat, Sorcha McKenna e Ben Richardson | Tradução: Gilson Jorge

**Artigo publicado na revista Diagnóstico n° 20.

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Para auxiliar ainda mais na compreensão do tema, aproveitamos para publicar um artigo do Le Monde Diplomatique, datado do ano de 2008.


O preço da saúde na África
http://www.diplomatique.org.br/
Entre os desafios que os africanos têm de enfrentar cotidianamente, a busca por tratamento médico adequado é um problema central. Enquanto a saúde pública tenta se reerguer, o modelo privado predomina e todos os anos milhões de vidas de camponeses e trabalhadores pobres são perdidas
por Valéry Ridde , Blanchet Karl
Ao prescrever a receita, o médico alertou: “Enquanto você não pagar, ficará presa aqui”. Christine, uma jovem burundiense, tinha apenas 18 anos quando se tornou prisioneira de um hospital pela primeira vez. Esse tipo de cativeiro é comum em seu país. Dezenas de doentes ficam vários dias ou mesmo semanas detidos, sob os “cuidados” de vigias e seguranças.
 
Muitos pacientes costumam fugir durante a noite, por não ter como quitar as despesas de hospitalização – atitude que os enfermeiros classificam como “evasão”. Para obrigá-los a voltar e pagar a dívida, suas cédulas de identidade são confiscadas. Isso, porém, nem sempre funciona: caixas inteiras desses documentos estão amontoadas nos escritórios dos centros de saúde. Um hospital de Bindi, no norte de Burquina Faso, foi além, e colocou grandes avisos nas paredes da enfermaria: “É preciso pagar o preço da saúde”.

Mariam Uedraogao, que mora em um povoado remoto a leste da capital, Uagadugu, explica o funcionamento desse sistema: “Temos de pagar 200 francos (0,30 euros) por um papel que autoriza os médicos a nos examinar. Se descobrirem qual é a doença, lhe dão outro papel, que é uma receita para comprar o remédio. Quem não tem dinheiro fica em casa até sarar. Assim são os postos de saúde, não é todo mundo que vai”.
 
Ao contrário do que acontece na maioria dos países ricos, em que os convênios – públicos ou privados – arcam com ao menos uma parte dos custos, na África a despesa corre por conta do paciente. Até a década de 1980, os sistemas de atendimento médico do continente eram gratuitos – uma conquista resultante dos processos de independência dos países –, mas reformas estimuladas por financiadores internacionais acabaram com esse direito, que já era bastante precário. E ainda contaram com a cumplicidade daqueles que a pesquisadora americana Merilee Grindle chama de “acólitos nacionais”: as elites locais que “só recorrem à medicina privada, muitas vezes no exterior, e não dão prioridade real à saúde pública”1. Afinal, a experiência demonstra que o sistema de pagamento direto impede apenas os mais pobres de se tratarem e de acordo com o próprio Banco Mundial, esse tipo de prática só possibilita cobrir de 5% a 10% das necessidades.

Em Serra Leoa, as famílias pobres gastam 25% de sua renda em despesas com saúde, ao passo que os mais ricos não desembolsam mais do que 3,7%2. Assim, os dados concluem que, por falta de renda, entre 10% e 30% da população africana não tem acesso ao atendimento médico. E isso gera revolta: “Sempre somos barrados na porta”, queixa-se um camponês de Burquina Faso. Para pagar consultas, muitas pessoas se endividam ou são obrigadas a vender suas colheitas e seus animais – uma “despesa catastrófica”. A proporção de famílias que efetuam tais desembolsos chega a 8,5% no Maláui3.

Longe dos objetivos

Já a ajuda internacional, que nunca foi muito significativa, passou de US$ 6 bilhões em 2000, para US$ 14 bilhões em 20054. Um montante considerável, mas ainda insuficiente para atender à demanda. Além disso, esse tipo de auxílio externo está excessivamente concentrado no combate a doenças específicas (como a AIDS e a tuberculose) e não no reforço geral dos sistemas de saúde.
 
Diante desse quadro é possível afirmarmos que os Objetivos do Milênio para o Desenvolvimento5 fixados pela ONU não serão alcançados na África. E é por essa razão que, depois de passar 20 anos exigindo que os pacientes pagassem pelo atendimento médico, as autoridades nacionais e mundiais parecem ter começado a mudar de idéia. Até mesmo o Banco Mundial, fervoroso promotor dessa abordagem nas décadas de 1980 e 1990, dá sinais de uma nova opinião. Em 2007, declarou-se disposto a apoiar os países que abolissem o pagamento direto. Por sua vez, Margaret Chan, diretora-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), afirmou que “para reduzir a pobreza, parece sensato ajudar os governos a suprimirem o pagamento”. O departamento de auxílio humanitário da Comissão Européia também passou a dar um apoio discreto às associações africanas que implementam a gratuidade. Como ponderou o pesquisador britânico Chris James, se essa política fosse sistematizada para as crianças menores de cinco anos, entre 150 mil e 300 mil vidas seriam poupadas em 20 países da África subsaariana6.

Conscientes da situação, alguns governos se mostram dispostos a reorientar a política para o setor. África do Sul e Uganda já somam alguns anos de experiência nisso. Mais recentemente, o Senegal tornou gratuito o tratamento de idosos; o Mali, as cesarianas; o Níger, o atendimento de crianças menores de cinco anos, e em Burquina Faso, o Estado passou a subvencionar 80% dos partos.

Em todos esses países, o efeito foi imediato. O número de consultas aumentou exponencialmente, às vezes surpreendendo os técnicos. Mas a falta de preparação prévia para as reformas ainda suscita restrições. A amargura de Drissa, enfermeiro de um hospital nigerense, é exemplar: “Tenho a impressão de que o Níger se transformou num laboratório para testar todos os sistemas, um país-cobaia”. Ele se preocupa com a origem do financiamento, a falta de organização, a necessidade de acompanhar e avaliar posteriormente essa mudança, e sua perenidade. Além disso, o Ministério da Fazenda do país se mantém resistente a aplicar as novas diretrizes. “Quando a coisa chega ao Tesouro, parece que já não se trata de uma prioridadenacional”, diz um representante de uma agência internacional de cooperação.
 
Por outro lado, certos povoados ainda não compreenderam a mudança de orientação na área. É uma herança dos anos 1980, quando vigorava certa idéia de participação comunitária que pretendia entregar aos camponeses o controle dos centros de saúde, mediante a criação de comitês de gestão. Tal sistema nunca funcionou de fato, e a participação se restringiu a uma contribuição financeira. Assim, os camponeses se habituaram a pagar. Atualmente, os responsáveis comunitários não compreendem por que lhes cobram a extinção dessa prática que alimenta os caixas dos hospitais, nos quais têm sido depositados milhões de francos7. Claro, o dinheiro poupado nunca foi utilizado para facilitar o acesso dos mais pobres aos tratamentos de saúde, mas continua guardado para a “eventualidade” do corte das subvenções do Estado. Ademais, os camponeses não esqueceram as décadas de 1960 e 1970, quando a gratuidade significava ausência de medicamentos e atendimento de má qualidade.

Alguns também enxergam no termo “gratuidade” um exagero verbal. Mesmo que a atividade do médico não seja cobrada, o paciente continua tendo de financiar o transporte, o tempo perdido com o processo de tratamento, a alimentação dos acompanhantes e todas as outras despesas indiretas. À luz da experiência em Gana, muitos se perguntam: “Quem são os verdadeiros beneficiários das novas políticas públicas?”. Nesse país da África Ocidental, os pesquisadores observaram que, num primeiro momento, as intervenções de saúde pública universais favorecem não os mais pobres, mas os mais ricos8. A instauração da gratuidade dos partos e das cesarianas permitiu a estes reduzirem em 22% o pagamento direto, ao passo que, para os pobres, a redução foi de apenas 13%. Acrescente-se a isso o fato de que os enfermeiros, que em certos países cobram comissão sobre o tratamento, também não estão satisfeitos. Para alguns deles, o pagamento direto é um meio cômodo de complementar seus baixos salários, mediante práticas pudicamente denominadas de “remunerações informais”.

A última dificuldade a superar é a do financiamento. A maior parte das políticas de isenção é custeada, direta ou indiretamente, por financiadores internacionais. Quando a “moda” passar, esse esforço continuará? Quando será a próxima reviravolta política? Os Estados africanos, levando em conta tais experiências, finalmente destinarão um orçamento decente à saúde?

Afinal, abolir o pagamento não basta: é preciso investir também na melhora do atendimento e pagar salários decentes aos profissionais da saúde, sobretudo para evitar a “fuga de cérebros”. Ambiciosa em seus objetivos, a Declaração de Abuja, que fixou a meta de destinar à saúde 15% do orçamento9, até agora não foi respeitada senão por uma minoria de países como, por exemplo, Gana.
Valéry Ridde é pesquisador de saúde pública da Universidade de Montreal, no Canadá.


Blanchet Karl é consultor de saúde pública.
1     Yannik Jaffré e Jean-Pierre Olivier de Sardan. Une médicine inhospitalière. Les difficiles relations entre soignanants e soignés dans cinc capitales d’Afrique de l’Ouest. Paris, Karthala, 2003.
2     Stephen J. Fabricant, Clifford Kamara, Anne Mills. Why the poor pay more: household curative expenditures in rural Sierra Leone. International Journal of Health Planning and Management, Keele (Reino Unido), 1999.
3     Ke Xu et al. “Protecting households from catastrophic health spending”. Health Affairs n°4; Bethesda, 2007.
4     Michael Reich, et al.. “Global action on health systems: a proposal for the Toyako G8 summit”. The Lancet, 2008.
5     O Projeto do Milênio foi lançado em 2000 pela Organização das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de melhorar as condições de vida nos países mais pobres até 2015.
6     Chris James. “Impact on child mortality of removing user fees: simulation model”. Londres: British Medical Journal, 2005.
7     1 franco CFA = 0,001 euro.
8     F. A. Asante, Cornilius Chikwama, Aba Daniels, Margaret Armarklemesu. “Evaluating the economic outcomes of the policy exemption for maternal delivery care in Ghana”. Acra: Ghana Medical Journal, 2007.
9     A declaração foi assinada em 2001 pelos Estados membros da Organização da Unidade Africana (OUA).

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