Quando encontro Nick Middleton pela primeira vez, ele está cercado por globos terrestres e mapas mostrando os locais mais exóticos do planeta. Estamos no porão da Stanfords, a maior livraria especializada em material de viagem em Londres. Mas Middleton está aqui justamente para falar dos países ausentes da maioria dos livros e mapas à venda na loja.
Ele os chama de “países inexistentes”, mas embora seus nomes pareçam meio fantasiosos – Atlantium, Christiania e Elgaland-Vargaland -, todos são lugares de verdade, ocupados por cidadãos fervorosamente patrióticos.
Nosso mundo está cheio de regiões que contam com o “perfil” de um país: população fixa, governo, bandeira e moeda. Alguns até emitem passaportes. No entanto, por uma série de razões, tais regiões não têm direito à representação na ONU e são ignoradas pela maioria dos mapas. Middleton, geógrafo da Universidade de Oxford, mapeou essas terras escondidas como parte do livroAtlas de Países que Não Existem.
Ao folhear as páginas, a impressão é de entrada num mundo paralelo, com histórias e culturas vibrantes e ricas, porém esquecidas. Esse mundo paralelo tem até uma Copa do Mundo particular.
Conceitos
A ideia para o projeto veio enquanto Middleton lia o clássico infantil As Crônicas de Nárnia para a filha – em que a ação se passa em um mundo escondido atrás de um guarda-roupa. ele teve uma epifania. “Não precisava de mágica para visitar um país ‘que não existia’ aos olhos de outras nações. Só não sabia que existiam tanto. Poderia ter escrito vários livros”, explica o geógrafo.
Middleton conta que não existe uma regra de ouro para definir o que é um país. Há quem cite a Convenção de Montevidéu, de 1933: para se tornar um país, uma região precisa ter território definido, população permanente, um governo e a capacidade de estabelecer relações diplomáticas com outros países.
No entanto, muitos locais que atendem a tais exigências não são membros da ONU, o que se considera uma espécie de selo de aprovação para a existência de um país. Taiwan é um exemplo. Até 1971, a ilha, que se declarou como nação após forças nacionalistas perderem a Guerra Civil chinesa para o Mao Tsé-tung e o Partido Comunista, tinha assento na Assembleia Geral. Perdeu-o para a República Popular da China.
O próprio Reino Unido é um caso estranho. A lei britânica considera Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte Estados individuais. Todos têm times de futebol e rúgbi próprios, por exemplo. Mas o assento na ONU é o mesmo. “Sob esse quesito, por exemplo, a Inglaterra não é um país”, afirma Middleton.
Mas o geógrafo preferiu se concentrar em regiões que se encaixam na definição de Montevidéu. A lista conta com alguns nomes familiares para o público – Taiwan, Tibete, Groenlândia e Chipre do Norte -, mas também traz localidades mais obscuras e nem por isso menos sérias.
Middleton, por exemplo, discute os exemplos de populações indígenas buscando a recuperação de sua soberania. E um dos casos mais impressionantes, segundo ele, é a República de Lakotah. Com população de 100 mil habitantes e encravada na região central dos EUA, a república é uma tentativa de retomada das Colinas Negras pela tribo Lakota Sioux.
A causa teve início no século 18, e em 1868 os Sioux tinham assinado um acordo com o governo americano, que inclusive prometera posse indefinida das colinas. Porém, os índios não contavam com a descoberta de ouro na região, o que fez o governo esquecer rapidamente do compromisso enquanto garimpeiros de todos os cantos dos EUA invadiam a região.
Os Lakota precisaram esperar outro século para receber um simples pedido de desculpas. Em 1998, a Suprema Corte Americana julgou o caso como um dos mais desonestos negócios na história do país e determinou indenização de US$ 600 milhões. Os Lakota, porém, recusaram o dinheiro.
“Os índios dizem que aceitar o dinheiro seria dizer sim para um crime”, explica Middleton.
Em vez disso, em 2007 uma delegação foi até Washington declarar sua “saída dos EUA”, e desde então os Lakota têm buscado sua independência na Justiça.
Batalhas similares ocorrem em praticamente todos os continentes. Na África, por exemplo, há o caso de Barotselândia, um reino com população de 3,5 milhões que busca se separar de Zâmbia, e da Ogonilândia, que almeja a secessão da Nigéria. Ambas declararam independência em 2012.
Na Oceania, a República de Murrawarri foi fundada em 2013 por uma tribo aborígene que escreveu para a rainha Elizabeth 2ª (a Austrália ainda tem a Coroa Britânica como chefe de Estado) intimando-a a provar sua legitimidade sobre suas terras. Quando o prazo de 30 dias para uma resposta se esgotou, os Murrawarri se declararam “livres”.
Porém, nem todos os países no livro têm raízes históricas tão profundas. Volta e meia há casos de nações estabelecidas por indivíduos excêntricos buscando, digamos, o que consideram justiça. Middleton cita Hutt River, na Austrália, um “principado” fundado em 1970 por uma família de fazendeiros buscando escapar das cotas de produção de grãos estabelecidas pelo governo federal. Logo tinham criado títulos de nobreza, moeda própria e mesmo um serviço postal.
“Contam com uma venda de selos que vai de vento em popa”, conta o geógrafo britânico.
Depois de décadas de bate-boca com o governo australiano, Hutton River, que fica na costa oeste da Austrália, a 517km de Perth, conseguiu ao menos independência fiscal da Austrália.
Na Europa, há Forvik, uma ilhota no arquipélago das Shetland que virou um Estado fundado por um inglês buscando mais transparência na política. Há ainda Sealand, fundada em uma antiga plataforma marítima no Atlântico Norte, e Cristiânia, um enclave hippie em plena capital dinamarquesa, Copenhague. Cristiânia foi fundada por um grupo de squatters que ocuparam um alojamento militar abandonado no centro da cidade, em 1971, e no mesmo ano se declararam independentes da Dinamarca.
Desde então, o governo do país escandinavo tem feito vista grossa para atividades do enclave: uma delas o consumo de maconha, legal em Cristiânia mas proibido no resto do país.
Middleton também argumenta no livro que a dificuldade de definir o que é um país pode abrir espaço para que o conceito de Estado-nação seja repensado. Cita o caso da Antártida, continente que é compartilhado de forma pacífica pela comunidade internacional, sem ser “fatiado” formalmente. E o atlas de Middleton conta com dois exemplos mais radicais.
Atlantium é um país cuja capital, Concórdia, fica em uma província remota da Austrália – mais ocupada por cangurus que pessoas. Mas se trata apenas do centro administrativo: o país é “não-territorial”, o que significa dizer que qualquer um pode se tornar um cidadão. “Em uma era em que as pessoas são cada vez mais unidas por interesses e propósitos comuns fora das fronteiras convencionais, Atlantium oferece a alternativa para a prática discriminatória histórica de distribuir nacionalidades para indivíduos sob a forma acidental de nascimentos ou circunstâncias”, diz o site do país.
Uma coisa é certa: o mundo que conhecemos está em constante mutação, segundo Middleton. “Ninguém da minha época um dia imaginou que a União Soviética iria se fragmentar”, lembra. Em um futuro distante, todos os territórios que conhecemos podem eventualmente se tornar um país que não existe.
Leia a versão original desta reportagem em inglês no site da BBC Future
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