Quais são os conhecimentos necessários para trabalhar com a tradução das Sagradas Escrituras? É comum pensar que tradução se trata de uma tarefa a ser realizada entre dois idiomas, por quem tem o domínio de ambos. No entanto, ela é mais do que a construção de uma ponte entre duas diferentes línguas para se transitar o sentido. As competências necessárias são ainda maiores quando falamos de um trabalho de tradução para línguas que possuem pouco ou nenhum estudo prévio, gerando desafios que transcendem os limites da linguagem, como no caso das traduções feitas pelos missionários para os povos com que trabalham.
Importante se dizer, logo de início, que todo trabalho de tradução, mesmo os mais bem realizados, poderão atingir um alto grau de fidelidade e precisão, mas nunca alcançarão a perfeição. Cabe lembrar aqui o famoso ditado italiano, que descreve o tradutor: “traduttore, traditore”, isto é, “tradutor, traidor”. Com isso, quero lhe assegurar que não há tradução perfeita. Independentemente do número de edições, revisões, membros do comitê editorial ou qualquer outro controle de qualidade, a comunicação do sentido entre diferentes universos linguísticos e culturais nunca será exato, esta é uma tarefa que não está ao alcance das mãos humanas. Mas isso não significa que devemos desistir de traduzir ou diminuir o valor desse trabalho.
Mesmo diante das limitações ressaltadas, cremos que pessoas podem ser alcançadas ao terem contato com o Evangelho por meio de uma tradução, mesmo que esta seja imperfeita. Aliás, foi assim comigo e, provavelmente, com você também, por meio de uma das traduções que temos para a nossa língua. Isso acontece porque, mesmo que as traduções disponíveis não tenham capturado as minúcias do significado dos primeiros textos bíblicos, ainda assim, a mensagem central é comunicada de forma clara e satisfatória para cumprir o seu propósito. A tradução da Bíblia ainda é a palavra de Deus, expressando a mensagem das Sagradas Escrituras, tendo o cerne do seu conteúdo preservado pelo próprio Senhor e sendo ela o instrumento do Senhor para transformar os corações daqueles que a leem.
Olhando para a história da tradução da Bíblia vemos que ela começou com a Septuaginta, sendo seguida por uma longa lista de traduções, tendo, hoje, disponível ao menos um versículo para milhares de línguas. Mas também é uma história ainda não concluída, aguardando ser escrita para quase 2 mil povos etnolinguísticos. Tradução tem um passado marcado por muitas lutas, perseguições e sangue derramado, justamente por causa do debate das dificuldades e consequências envolvidas no processo. Por diversos momentos a Igreja se deparou com a seguinte pergunta: proteger e preservar o texto sagrado ou traduzir e arriscar incorrer em possíveis erros? Me permita um parêntese aqui: essa pergunta, ainda hoje, ecoa de forma aguda no peito de muitos tradutores da Bíblia.
Mas foi em momentos em que a Igreja tentou proteger a Bíblia, evitando que ela estivesse disponível a todos, blindando-a para evitar que se incorresse em erros de interpretação e resguardando o seu acesso apenas aos líderes da igreja é que Deus levantou homens como John Wycliffe, William Tyndale, Lutero e muitos outros. Estes foram tradutores que, para colocar a palavra de Deus na mão de pessoas que não tinham acesso a ela, pagaram com suas próprias vidas. Wycliffe, por traduzir para o Inglês, foi condenado como herege e, após morto, foi exumado e teve seus ossos queimados e as cinzas lançadas no rio Swift, na Inglaterra. Tyndale viveu uma vida de perseguição e fuga até que, ao final, foi estrangulado e em seguida teve o seu o corpo queimado.
Retornando à nossa pergunta inicial, o que um tradutor precisa saber para realizar sua missão? Em nosso primeiro texto, mostramos que verter a Palavra de Deus para uma outra língua requer conhecimento em tradução, linguística, antropologia, tecnologia e outras áreas, sem mencionar uma sólida formação em teologia bíblica e conhecimento do grego e hebraico bíblico.
Como você já notou, desde o início deste texto estamos abordando a natureza da ciência da tradução propriamente. Como toda ciência, ela possui teorias e métodos que vem se desenvolvendo com o avanço dos estudos. Historicamente, a discussão girou em torno da busca por um resultado que se aproximasse de uma tradução com uma equivalência mais formal, preservando as estruturas e formas do texto, resultando em uma tradução mais literal, ou, a produção de um trabalho em se que apresentasse um texto mais dinâmico, priorizando a comunicação do sentido do texto fonte.
De maneira geral, toda boa tradução bíblica tem por alvo a incansável produção de um texto claro, preciso, natural e aceitável. A presença desses quatro elementos é essencial. Por se tratar da Palavra do nosso Deus, é sine qua non que ilimitados esforços sejam aplicados na proteção da fidelidade do sentido do texto. Também uma produção textual que respeite as regras da língua alvo, possibilitando uma leitura que possa ser feita com clareza e fluidez é de suma importância. Não há razão para a existência de um texto artificial e com poucas condições de leitura. Não foi por acaso que o Novo Testamento foi escrito em Grego Koine, que era um grego mais popular e acessível a todos.
Espero que você tenha compreendido um pouco dos desafios da tradução da Bíblia. Este é uma história ainda não concluída, pois muito ainda há por se fazer. Perseguições, lutas e sangue a ser derramado ainda precisam ser superados para que a boa mensagem do Evangelho chegue às mãos dos que ainda não a conhecem, e Cristo, nosso mestre, seja anunciado entre todos os povos. Também a história nos ensina que a palavra do nosso Deus permanece para sempre. Ela já atravessou milênios, é o livro mais traduzido, lido e distribuído na humanidade e tem se provado indestrutível na sua vulnerabilidade. E não apenas a história nos ensina isso, pois o nosso próprio Senhor nos diz que “Para sempre, ó Senhor, está firmada a tua palavra no céu.” (Sl 119.89).
Jessé Fogaça - Pastor presbiteriano, linguista e tradutor da Bíblia. Membro da Agência Presbiteriana de Missões Transculturais (APMT), Associação Linguística Evangélica Missionária (ALEM), Australian Society for Indigenous Languages (AuSIL) e Summer Institute of Linguistics (SIL Internacional).
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