Portal Ultimato – Qual o nível de gravidade desta seca no Nordeste?
John Medcraft - Esta seca é gravíssima. É a pior que vi em 41 anos de trabalho aqui.
Marcos Sal da Terra - Esta é, sem dúvida, a maior seca que se tem registro no sertão. A fauna e flora são as maiores vítimas desta estiagem.
Ita Porto - A falta de chuvas em períodos prolongados como o dos últimos 3 anos é considerado um desastre ambiental, considerado um dos piores dos últimos 50 anos. Segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) já são cerca de 1.200 cidades espalhadas em nove Estados que já declararam situação de emergência. São 22% dos municípios do Brasil e quase 10 milhões de pessoas afetadas pelas secas na região. Todos os estados que compõe o semiárido nordestino estão passando por grandes dificuldades. Pernambuco, por exemplo, é o estado com maior número de municípios atingidos. Segundo a Compesa (Companhia Pernambucana de Saneamento), dos 185 municípios do Estado, 151 estão com algum tipo de déficit no abastecimento. Desses, 16 estão em colapso, sendo abastecidos por carros-pipa.
Portal Ultimato – Que tipo de sofrimento as pessoas estão vivendo?
John Medcraft - A falta de água é crítica. Patos (100.000 habitantes) sobrevive, graças a uma adutora do açude de Coremas (60 km ao oeste) que foi uma luta nossa de dez anos atrás. Mesmo assim temos água três dias sim, um dia não. Muitas cidades estão em colapso total de água e dependem de caminhões-pipa do Exército. Imaculada, onde ACEV tem uma igreja, está sem água desde janeiro. Nos sítios, quem não tem poço, precisa andar cada vez mais longe para conseguir água.
Marcos Sal da Terra – A economia quase que entrou em colapso em algumas regiões, principalmente nas bacias leiteiras. As notícias dão conta, por exemplo, que Pernambuco perdeu mais de 600 mil cabeças de gado (mortos, abatidos antes do tempo ou enviados para outros estados da Federação que não estão padecendo com a seca).
Ita Porto - Além da falta de água, algumas regiões também enfrentam a contaminação dos mananciais pelos restos dos animais mortos pela seca, o que provoca doenças diarreicas agudas, com registro de mortes de crianças e idosos. Outro problema é o aumento dos preços dos alimentos, sobretudo aqueles oriundos da agricultura. Com a morte de plantas frutíferas e dos rebanhos de animais, há perda da produção agrícola e diminuição do fornecimento de alimentos. Na pecuária, de acordo com a Associação Municipalista de Pernambuco (AMUPE), a seca já provoca prejuízos da ordem de R$ 1,5 bilhão na pecuária.
Portal Ultimato – Os Governos têm ajudado, de verdade, a enfrentar a seca deste ano?
John Medcraft - Aqui na Paraíba tem sido a seca melhor administrada que já vi. O Exército administra a distribuição de água nos sítios, com fiscalização transparência. Os governos federal, estadual e municipal estão reativando poços velhos e perfurando novos. O governo estadual tem distribuído ração animal subsidiada para, pelo menos, ajudar os pequenos produtores. A bolsa família pelo menos ajuda o sertanejo a sobreviver.
Marcos Sal da Terra - Esperar que os governos ajudem de verdade é uma atitude infantil. A gente sabe que existe a “indústria da seca”, a barganha eleitoral (voto por água, por exemplo), que situações de calamidades e emergenciais favorecem a corrupção. Porém não se pode negar que ações pontuais têm minorado os flagelos que são comuns à estiagem no sertão (caminhões-pipa, Bolsa Família etc).
Ita Porto - Algumas atitudes emergenciais têm sido realizadas pelo Governo Federal como o fornecimento de água através da Operação Carro-Pipa. São 835 cidades, em nove estados, totalizando quase quatro milhões de pessoas. Existem investimentos para construção de reservatórios de água como barragens, cisternas, perfurações de poços, dentre outras ações emergenciais de enfrentamento à seca (confira no Observatório da Seca. Da mesma forma os governos estaduais e municipais têm contribuído de acordo com a sua capacidade de recursos.
Portal Ultimato – No imaginário brasileiro, a seca está muito ligada à região Nordeste. E junto com ela, há toda uma “cultura da seca”. Que mitos ou ideias falsas o brasileiro tem da seca e de suas vítimas? O que é verdade e o que é mentira?
John Medcraft –
1. “Os nordestinos são coitadinhos ou preguiçosos”. O nordestino sertanejo que eu conheço e com convivo há mais de 40 anos levanta ainda no escuro e trabalho num sol escaldante durante longas horas cada dia. Não há mais preguiçosos aqui de que em outros lugares – acredito muito menos. Quanto a coitadinhos, esta imagem vem da exploração de imagens de miséria por organizações, inclusive evangélicas, que faturam com isso para si.
2. “Deus é um culpado pela seca”. A seca é um fenômeno natural. Alguns dizem que ela é causada por um pecado específico; outros que é causada pela idolatria (como se apenas no Nordeste houvesse idolatria). Se chove tanto no Rio de Janeiro e em São Paulo, ninguém deve pecar por lá então!
3. “A seca é a maior inimiga do sertanejo”. Que a seca complica a vida, é verdade. Mas aprendemos cada vez mais a conviver com ela cada e a nos organizar para enfrentar a próxima. Lutamos para uma melhor distribuição da água e que a transposição do Rio São Francisco chegue às pessoas certas e aos centros que mais precisam.
Marcos Sal da Terra - O grande mito é tentar “combater a seca”. Seca não se combate. O sertão é seco e continuará com índices de precipitação pluviométricas muito baixos; este é o nosso clima. O que tem que ser feito é a adoção de políticas públicas e de convivências com a seca. A transposição do São Francisco é um grande exemplo desta realidade. O que era para ser um grande benefício para tanta gente, virou uma vergonha nacional.
Ita Porto - A seca está realmente ligada à região Nordeste do Brasil; isso é fato, consequência de um fenômeno ambiental natural, considerada uma catástrofe natural. Com as mudanças climáticas, no entanto, essa realidade vem deixando de ser um “privilégio” apenas da região Nordeste. No nosso caso, temos percebido que a maioria do nosso povo, devido a forma dos líderes governar os municípios, tem abandonado a cultura da convivência a partir do conhecimento acumulado de convivência com o semiárido pelos nossos antepassados. Esses conhecimentos foram (ou estão sendo) esquecidos por esse povo. Por exemplo, diminuímos a capacidade de plantio, migramos para as cidades, aumentamos o consumo de água como se vivêssemos em uma região que tem muita oferta de água. A seca está tendo um impacto maior, pois perdemos essa resiliência. Antigamente as pessoas guardavam queijo nas paredes para comer, hoje é melhor comprar do que produzir o alimento. Perdemos essa capacidade de convivência. Tínhamos animais adaptados ao ambiente. Nossos rios não eram devastados, hoje os rios não tem a capacidade de guardar água como antigamente. Para nós, perdemos a capacidade de viver nessa região, pois colocaram na nossa cabeça que o bom é viver na cidade.
Portal Ultimato – Como expressar o amor de Jesus no meio de tanto sofrimento?
John Medcraft - Há tantas maneiras! O essencial é trabalhar com comunidades perfurando poços e, onde for possível, criando hortas onde a água for suficiente e de qualidade. Demonstrar o amor de Jesus em coisas práticas assim torna a fé visível. Ainda se pode ensinar comunidades a criar abelhas, melhorar criação de cabras e coisas assim. O melhor é ajudar as comunidades a criar sua própria renda e cultivar seu próprio alimento, mas quando isso não é possível as cestas básicas devem ser distribuídas, de forma emergencial, dentro das possibilidades de cada instituição.
Marcos Sal da Terra - É simples, façamos o que Jesus ensinou: “Dai-lhe vós de comer” (Lc 9.13). O problema é convencer uma igreja já acostumada a pedir, que também assuma a responsabilidade de dar.
Ita Porto - Jesus Cristo, em toda sua trajetória de vida e missão, nos ensinou (e ainda ensina) a enxergar os problemas da sociedade através da convivência (discipulado) com as pessoas. Seus milagres são relatados sempre do ponto de vista de alguém que se deu ao trabalho de sentir o sofrimento alheio, se misturando na multidão de pessoas que o seguiam. O amor de Jesus pode ser expresso por meio do envolvimento das pessoas com a problemática que estamos vivenciando nos últimos três anos. Somos convidados e convidadas a nos solidarizarmos com as pessoas e, em um contexto de emergência que estamos vivendo com essa seca. Isso pode significar envolver-se na luta por melhoria da qualidade de vida das pessoas que enfrentam o desafio de conviver com esse fenômeno climático. Envolver-se nos espaços de políticas públicas e cobrar a melhor aplicação dos recursos também é uma forma de lutar junto de quem precisa e revelar o amor de Jesus, proporcionando justiça social.
Portal Ultimato – Você vê com bons olhos a participação das igrejas evangélicas na luta contra a seca?
John Medcraft - Igrejas evangélicas que não participam desta luta vão ter que responder diante de Deus. Deus nos coloca em nossas comunidades para sermos “sal e luz”. Pregar é bom, é essencial, mas fazer vista grossa quanto ao sofrimento do próximo é pecado grave. As igrejas evangélicas grandes e ricas de outras regiões precisam entender que estamos no meio de uma catástrofe lenta e discreta; não chama atenção como uma enchente, mas tem efeitos devastadores. Estas igrejas precisam trabalhar junto com instituições sérias e transparentes que fazem auditorias independentes e têm experiência em agir no sertão. Todo cuidado é pouco com os exploradores do momento.
Marcos Sal da Terra - Como na história do aleijado que foi colocado na presença de Jesus, por alguns homens, através de um buraco feito no telhado da casa (Mc 2), vivemos a mesma realidade no sertão. Apenas a exceção se envolve, de forma prática, com a nossa gente.
Ita Porto - Nosso grande desafio é fazer com que as igrejas evangélicas compreendam sua importância e grande potencial no contexto do desenvolvimento social. Nosso convite é que as igrejas se sintam desafiadas a, junto conosco, ocuparmos os espaços de controle social, propondo ações de justiça social e ambiental e, nesse caso, colaborando com as ações de transformação cultural de enfrentamento dos efeitos da seca no Nordeste. Já temos tido bons resultados junto a igrejas parceiras que tem se levantado para lutar em favor de ações de convivência com o semiárido, envolvendo-se em audiências públicas, conscientização da sociedade, numa visão de missão integral.
Portal Ultimato – A seca tem um “lado positivo”?
John Medcraft - O lado positivo da seca é, como dizia Dom Helder Câmera, que ela é um desafio que faz a vida interessante. Ela nos estica a buscar soluções novas como, por exemplo, dessalinizar água salobra de poços com o mínimo possível de prejuízo ao meio ambiente.
Marcos Sal da Terra - Vemos nela a soberania de Deus. Apesar dos nossos pecados, Ele nos permite “continuar vivos pra contar a história”.
Ita Porto - Sim. As famílias tem se preocupado em se precaver com armazenamento de alimentos a partir do aprendizado das dificuldades enfrentadas pelos anos de seca. Essa pode ser uma oportunidade para, em longo prazo, voltarmos à cultura de convivência com a seca.
Portal Ultimato – Conte-nos alguma história de superação que você viu ou ouviu.
John Medcraft - A ACEV fez um poço nesta seca com uma comunidade quilombola em Manaíra (PB). Era uma comunidade isolada que, além de sofrer com o grave problema da falta de água, ainda sofria terríveis preconceitos raciais. Na terceira tentativa, conseguimos ajudar a comunidade a perfurar um poço que deu água e então bombear a água do vale onde fica o poço para o alto da serra onde a comunidade reside. Presenciei todo este processo e luta. Vi as lágrimas de alegria, a esperança renovada e a autoestima do povo começando a ser restaurada. “Se alguém está em Cristo é verdadeiramente livre”!
Marcos Sal da Terra – Uma comunidade caminhava 18 quilômetros a pé para buscar água (barrenta e salobra), apesar de dispor de cisternas em suas casas, mas que nunca haviam sido abastecidas pelo governo. Lá, uma igreja cavou um poço que custou R$ 7.900. Hoje a comunidade tem 36 mil litros d’água por hora.
Ita Porto - Seu Antonio Magalhães é agricultor e mora na Comunidade Carnaúbinha, na cidade de Afogados da Ingazeira, Sertão do Pajeú (PE). Ele e sua família são assessorados por Diaconia há cerca de 10 anos e desenvolvem estratégias de convivência com a seca, como a reutilização da água usada no trabalho doméstico, o uso inteligente da silagem para armazenar alimento humano e animal. Seu Antonio também gerencia um Banco de Sementes Comunitário que existe há 13 anos com sementes nativas que beneficiam a família dele e a comunidade. Ele cultiva um banco de proteínas com variedades de plantas forrageiras como gliricídia, leucena, palma, feijão guandu, sorgo forrageiro, dentre outras. Essas estratégias fazem parte do resultado da ação de Diaconia junto as famílias, estimulando-as a aplicarem técnicas de convivência com o semiárido. Os silos são feitos em mutirões comunitários estimulando a organização das famílias como forma de fortalecimento político.
Portal Ultimato – Como os leitores podem ajudar seu ministério e organização na luta contra a seca?
John Medcraft - A ACEV só não faz mais poços (já fez mais de 200), só não inicia mais plantações no meio do deserto, e só não cria mais cabras, abelhas e galinhas por falta de mais recursos financeiros. A resposta é simples assim. Já temos uma equipe maravilhosa, dedicada e experiente que deseja e precisa fazer mais. O sertanejo ama o sertão e não quer sair daqui. Temos que facilitar isso e fortalecer a igreja evangélica sertaneja no processo.
Marcos Sal da Terra - O samaritano em (Lc 10) fez o que a grande maioria (representada na mesma história pelo sacerdote e levita) hoje não faz. Ele prestou atenção na situação daquele que havia sido salteado, aproximou-se dele e, cheio de íntima compaixão, pôs “a mão na massa”.
Precisamos mais do que dinheiro (o samaritano não se limitou a dar dois denários ao dono da estalagem), precisamos de gente que disponha dos seus dons e talentos, do seu tempo e do seu esforço. Precisamos menos de discurso e mais de ações. Temos uma “teologia refinada” (tantas vezes), mas uma prática cristã pífia, que não acompanha o discurso (tantas vezes). Temos um exército que tenta em vão defender a fé em Cristo, mas que não vive o que ele ensinou (e acha que isto é defesa).
“Grande é, em verdade, a seara (sertaneja e toda a sua problemática), mas os obreiros são poucos; rogai, pois, ao Senhor da seara que envie obreiros para a sua seara.”
Ita Porto - Ocupar os espaços de construção das políticas públicas como fóruns e conselhos de desenvolvimento. Que os líderes evangélicos possam estimular os debates sobre o poder da cidadania de seus membros junto às comunidades em que vivem.
***
Entrevistados:
John Medcraft é inglês, naturalizado brasileiro, e mora em Patos (PB). É o presidente da Ação Evangélica (ACEV), uma igreja que neste ano completou 75 anos. A ACEV trabalha em todo sertão paraibano, e também em regiões de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará.
Marcos Sal da Terra é o vocalista da banda Sal da Terra, um projeto missionário que leva a música, o serviço (alimento, água, oração, voluntários) e a Palavra de Deus para o sertão pernambucano.
Ita Porto trabalha na Diaconia, uma organização de inspiração cristã, sem fins lucrativos, que promove a justiça e o desenvolvimento social no Nordeste. A instituição enfrenta a seca com ações estruturantes que ajudam a população, de forma sustentável, a conviver com as condições de semiaridez. Marcelino Lima e Adilson Viana também colaboraram com as respostas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário